Quando a gente pensa em filmes de fantasia, logo pensa em Disney, alguma coisa do Tim Burton e uma narrativa mais voltada ao público infantil. Em A Forma da Água o diretor Guillermo del Toro desafia esta lógica e oferece um conto de fadas para adultos. O resultado? O maior número de indicações ao Oscar deste ano.
Diferentemente de seus filmes ambientados em um mundo claramente fantasiosos ou em alguma espécie de dimensão alternativa, A Forma da Água se passa em Baltimore no início dos anos 1960, quando a Guerra Fria mexia com as paranoias dos norte-americanos, em especial aqueles que trabalhavam para o governo.
Nesta ambientação, conhecemos Elisa (Sally Hawkins), uma zeladora muda que trabalha em um laboratório super secreto do governo. Logo de cara a gente percebe que ela tem uma vida extremamente solitária, contando com o apoio de poucos amigos que conseguem se comunicar com ela, como o vizinho Giles (Richard Jenkins) e a colega de trabalho Zelda (Octavia Spencer). Mas a solidão dela começa a ter fim quando trazem para o laboratório uma criatura anfíbia capturada na América do Sul.
Elisa contraria as ordens de apenas entrar e limpar a sala em que a criatura é mantida e desenvolve uma amizade com ela. É claro que isto é uma exclusividade de Elisa, já que com as outras pessoas do laboratório o homem anfíbio é bem hostil, em especial com o chefão militar da galera, Richard Strickland (Michael Shannon), que é atacado pela criatura logo no começo.
A relação entre Elisa e o homem anfíbio é alimentada à base de ovos (a dieta dele é basicamente proteína), música e a facilidade de comunicação entre eles. É tocante a forma como ela descreve que “ele é o único que não percebe que falta algo nela”. Porém, quando o futuro de seu amigo é ameaçado pela crescente frustração de Strickland ela precisa agir. O tom agridoce do filme, embasado pela arrasadora frase “a vida nada mais é do que o naufrágio dos nossos sonhos”, torna a história melancolicamente crível para adultos.
A fórmula do filme não é a mais original de todas: tem elementos de A Bela e a Fera, o monstro parece um upgrade do amigo do Hellboy e a gente já manja bem das paranoias da Guerra Fria. Mas o Guillermo del Toro conseguiu juntar isso de uma forma tão natural que, assim como um peixe, ele consegue nos fisgar e fazer com que a gente se preocupe com aqueles personagens. Mesmo imaginando o que vai acontecer, o suspense é bem conduzido. Talvez não tanto quando em O Labirinto do Fauno, mas eu me vi segurando a respiração em alguns momentos.
Se em termos de roteiro o filme não apresenta grandes destaques, a parte técnica merece todas as indicações. A direção de arte apresenta uma rica e detalhada criação de ambientes que nos transportam para o mundo da Elisa: ora pelo abarrotado e decadente apartamento do vizinho, ora pela ameaçadora atmosfera do seu trabalho. A utilização da cor verde é certeira para evocar tanto uma atmosfera tóxica e esquisita (quase que de um filme B), como a magia da criatura que era considerada uma divindade por outros povos.
A fotografia também tem um trabalho fundamental para valorizar a pureza de Elisa: mesmo em um filme que se passa predominantemente à noite, há sempre uma luz extra sobre ela, destacando a sua natureza mesmo em um contexto tão sombrio. A trilha sonora de Alexandre Desplat evoca uma homenagem ao cinema clássico e contribui com a magia da trama. Em alguns momentos me lembrou até a de Cinema Paradiso, que é uma das minhas favoritas de todos os tempos. Oscar nele!
A direção do del Toro é bem autoral sem ser caricata. Mais ou menos como nos bons tempos do Tim Burton. É acessível ao ponto de convencer audiências não tão acostumadas com o seu trabalho, mas pitoresca o suficiente pra gente ainda se lembrar que se trata de um filme dele.
No elenco, o maior destaque é de Sally Hawkins, merecidamente indicada ao Oscar de Melhor Atriz. Sem falar uma palavra, ela consegue deixar bem claro tudo o que se passa na cabeça da personagem e as diferentes reações que ela precisa ter diante de sua história: fascínio, curiosidade, repulsa, coragem e frustração. O trabalho do elenco de apoio está apenas ok, com todo mundo fazendo o que se espera deles: Richard Jenkins é o vizinho frustrado com trabalho e sua sexualidade, Michael Shannon é o vilão malvado da cabeça aos pés que só quer fazer maldade e Octavia Spencer é Octavia Spencer. Um personagem com um pouco mais de camadas é o do Michael Stuhlbarg, que nos deixa em dúvida sobre suas reais intenções em alguns momentos. O Doug Jones, mesmo com todas as maquiagens e trajes, tem uma desenvoltura sensacional pra elaborar a personalidade do homem anfíbio, pena que ele não tem tanto tempo de tela para isso.
Embora se trate de uma bela produção, não sei se A Forma da Água terá fôlego para validar as 13 indicações ou ainda se consolidar um clássico do cinema. De qualquer forma, a pureza desta história envolvente e a qualidade técnica da produção dão corpo a um dos mais belos filmes da temporada.
Nota: