Críticas

Guerra Fria | Uma obra-prima fora do circuito de Hollywood

Não é exagero dizer que no Oscar deste ano a categoria de Filme Estrangeiro está mais disputada do que a de Melhor Filme. Guerra Fria é um filme polonês com ares de clássico que veio para deixar a disputa com Roma ainda mais interessante, recebendo indicações em categorias como Direção e Fotografia.

Dirigido por Pawel Pawlikowski (o mesmo do oscarizado Ida), o filme pode parecer apenas uma história de amor cheia de encontros e desencontros, mas esconde uma forte crítica social ao momento em que a Polônia se encontrava durante o período da Guerra Fria. Além do momento histórico, o título do filme também faz alusão ao relacionamento central do longa.

Tudo começa com um músico e uma produtora musical buscando jovens talentos no gélido interior da Polônia. A ideia é formar um grupo para apresentações de canto e dança pelo país – que posteriormente seria utilizado como elemento diplomático para ficar bem aos olhos de Moscou e conseguir algum tipo de relação com o ocidente.

O músico Wiktor (Tomasz Kot) logo se interessa por uma das jovens “descobertas”, Zula (Joanna Kulig), que tem uma obscuridade disfarçada pela sua aparência angelical. Não demora muito para ele descobrir que ela não é uma camponesa, mas sim uma jovem da cidade que foi para a cadeia por atacar seu pai abusivo com uma faca – fato que só alimenta o fascínio de Wiktor por ela.

Mesmo com uma protagonista que não é camponesa, o grupo folclórico faz sucesso e atrai os olhos de investidores – que no regime socialista é, logicamente, o governo. Para conseguir este financiamento o empresário do grupo inclui letras de música que enalteçam os ditadores soviéticos, por mais que isso não esteja nem perto da autenticidade folclórica a que o grupo se propunha.

Ao se apresentar na então dividida Berlim, Wiktor propõe a Zula que eles fujam para o lado capitalista e se instalem na vanguardista Paris. E é aqui que as idas e vindas do casal se intensificam e o roteiro cresce com o este suspense. Com saltos temporais muito bem pontuados, o filme instiga o espectador com promessas não concretizadas em tela, mas que mostram alguma consequência que indica qual o caminho traçado pelos personagens. O roteiro confia na inteligência no seu público e é isso o que o torna muito mais elegante e interessante.

A história dos dois levanta uma série de questionamentos quanto ao que os poloneses enfrentavam durante a Guerra Fria. Nem Wiktor encontra a felicidade que almejava em Paris e nem Zula se satisfaz com o seu limitado sucesso na Polônia. A própria situação do grupo folclórico e do papel de Zula são uma bela metáfora para como as coisas eram encaradas durante o regime soviético: nada precisa ser autêntico desde que se pareça autêntico e levante o ego dos ditadores. Tem uma cena muito emblemática disso bem no comecinho, quando os adolescentes vão passar um tempo ensaiando num casarão e um funcionário vai pendurar uma faixa com os dizeres “Nós saudamos o amanhã” e cai com a faixa. Ou seja, ninguém está saudando o amanhã, apenas o passado.

Mas continuando com o nosso casal central, o próprio nome Guerra Fria define bem a relação de Zula e Wiktor. Apesar das juras de amor, o casal passa mais tempo se provocando e desafiando do que necessariamente curtindo a companhia um do outro. Wiktor tem uma clara obsessão por Zula e ela só parece querer estar com ele no tempo e nos termos dela. O que o Pawlikowski deixa no ar é que o próprio relacionamento que parecia tão ardente evoluiu para uma Guerra Fria, uma disputa de poder para ver quem cede mais. É quase que uma mistura da Trilogia Before, do Linklater, e Trama Fantasma, do Paul Thomas Anderson. Quem assistir o filme vai entender como eu cheguei a esta equação.

Até aqui eu falei só do roteiro, mas tem um aspecto que realmente está chamando a atenção para este filme: a fotografia. Não dá pra negar uma certa ousadia ao se fazer um filme preto e branco em formato 4:3 nos dias de hoje. Isso é coisa de filme velho, não? No caso de Guerra Fria foi uma escolha certeira que faz o filme evocar um tom de clássico perdido no tempo. Se puxarmos à metáfora da faixa “Saudamos o amanhã” caindo, o diretor deixa bem claro que está saudando o passado.

Além disso, há planos que podem não ser inéditos, mas nem por isso deixam de ser originais: há uma cena específica em que um espelho é utilizado para dar a impressão de que os personagens estão de costas para uma festa cheia de pessoas, para depois descobrirmos que eles estão, na verdade, de frente, observando as pessoas. O diretor também abusa de recursos como aumentar o teto da cena para retratar a melancolia e a solidão do personagem. Não é apenas bonito, é um recurso fundamental para dar o tom da história.

O azar de Guerra Fria é competir no mesmo ano de Roma, mas ainda é um ótimo exemplo do bom cinema-arte que é feito no mundo e um merecido respiro para quem está cansado das fórmulas de Hollywood. É o tipo de filme que se deve assistir mais de uma vez para captar todas as suas sutilezas e, claro, apreciar um pouco mais esta belíssima obra de Pawlikowski.

Nota de Guerra Fria:


Obs.: Eu prometi pra mim mesma que até o final do texto eu conseguiria escrever o nome do diretor sem colar a grafia correta. Consegui, mas fui dar aquele confere no IMDb só pra garantir.

Imagens: © Lukasz Bak

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