Se a sua cabeça também explodiu ao assistir O Farol não se preocupe, você não está sozinho. O drama/terror de Robert Eggers é perturbador e cheio de misticismo, deixando muitas interpretações em aberto. Pra te ajudar a entender mais ou menos o que aconteceu ali, acompanhe a nossa explicação do filme O Farol.
Imagino que se você chegou a este post já tenha assistido ao filme, mas se este não for o caso, a gente passa um resumão: dois homens ficam isolados em uma ilha cuidando da manutenção de um farol pelo período de quatro semanas. Mas uma tempestade impede que o resgate dos dois chegue após o período, agravando ainda mais o quadro de loucura dos personagens. O filme protagonizado por Robert Pattinson e Willem Dafoe tem muitos pontos semelhantes à tragédia do Farol Smalls em 1801. Conheça esta história completa neste link.
Como mencionamos no primeiro parágrafo, não há apenas uma interpretação possível para toda a pira de O Farol. O próprio Eggers, que escreveu a história com seu irmão Max, não explica muito o que aconteceu ali, deixando o seu conteúdo ainda mais rico. De qualquer forma, vamos comentar algumas das principais possibilidades e referências para que você navegue pelo filme em águas menos obscuras.
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Esta talvez seja a vertente mais óbvia da história. Desde o início a dinâmica entre o experiente Thomas Wake (Dafoe) e o novato Ephraim Winslow (Pattinson) se assemelha a de um casamento abusivo. Ephraim fica com toda a parte mais “feminina” das tarefas enquanto Thomas passa o dia inteiro fazendo sabe-se lá o que no topo do farol, onde está a luz. Esta analogia chega a ser verbalizada no próprio filme, quando Ephraim diz que não aceitou o emprego para ser esposa de alguém. Na verdade, metaforicamente, o farol é a esposa de Thomas, a quem ele se refere no feminino e tem uma fixação quase que devocional.
Nem precisa prestar muita atenção para sacar que há muita tensão homoerótica entre os dois, o que, em determinado momento, quase culmina em um beijo. Adicione a isso o fato de os dois estarem isolados dentro de um farol que tem o formato de um pênis gigante e a coisa fica ainda mais interessante (ou doentia, dependendo do seu ponto de vista).
Segundo o diretor, não se trata apenas de algo estritamente sexual, mas sim da dinâmica de poder entre os dois. Thomas desde o início impõe sua vontade e dita todas as regras, criando um ambiente progressivamente mais insuportável para Ephraim. Intencionalmente ou não, ele conduz o colega à loucura. Segundo Willem Dafoe há um subcontexto de masculinidade tóxica, em que os cada um dos personagens testa os limites do outro a partir de seus próprios medos, inseguranças e arrependimentos.
Da perspectiva do psicoterapeuta Carl Jung, fundador da psicologia analítica, os personagens centrais de O Farol podem, inclusive, representar diferentes aspectos da psicologia da mesma pessoa. Thomas seria o selvagem id, entregando-se aos seus desejos mais primitivos. Enquanto Ephraim é o ego, consciente de normas sociais e sofrendo para manter a civilidade.
A revelação de que o verdadeiro nome de Ephraim também é Thomas é um grande aceno a isso, abrindo interpretações de que eles realmente sejam a mesma pessoa. Outra pista que sustenta esta teoria é a perna artificial de Thomas ao longo do filme. No final, quando Ephraim cai pelas escadas, ouve-se o estalo de uma possível perna quebrando. Seriam eles o mesmo personagem em diferentes momentos da vida?
Robert Eggers não nega seu fascínio por mitologia e, se seguirmos por este caminho, temos um prato cheio para as interpretações de O Farol. A mais óbvia delas envolve as figuras gregas de Proteu e Prometeu. O primeiro foi uma divindade marinha, amigo dos monstros marinhos e que sabia de tudo sobre o tema, mas que odiava compartilhar isso com os outros. Ele também era filho do deus Poseidon e cuidava de seus rebanhos. O que faz bastante sentido com a caracterização de Thomas Wake, que chegou a invocar o nome de Poseidon e, em uma das visões de Ephraim, apareceu caracterizado como tal.
Já o titã Prometeu tem muita relação com Ephraim, fascinado pela luz do farol que nunca pudera ver de perto. Na mitologia, Prometeu roubou o fogo do Monte Olimpo e os deu aos humanos, garantindo a vantagem sobre os outros animais e desencadeando a violência. A luz do farol seria o fogo e o conhecimento, neste caso. O que faz sentido para a reação de Ephraim ao final do filme: uma mistura de fascínio e terror diante da descoberta. A explicação do final do filme O Farol é justamente o castigo que Prometeu recebeu por ter feito isso: Zeus ordenou que ele fosse preso a uma pedra, no topo de um monte, e que todos os dias uma ave viesse dilacerar o seu fígado. Como o órgão se regenerava à noite, o castigo se repetia continuamente.
Quem está familiarizado com o trabalho anterior de Eggers, A Bruxa, pode ter notado algumas semelhanças. A primeira dela está nos nomes: em O Farol os dois protagonistas, no fim das contas, se chamam Thomas, bem parecido com Thomasin, a personagem principal em A Bruxa.
Mas os paralelos não acabam por aí. Nos dois casos o roteirista trabalha com o isolamento, em suas diferentes manifestações. Mesmo com a companhia de Thomas Wake, Ephraim lida com o isolamento geográfico da própria ilha e passa boa parte do dia solitário, executando suas tarefas longe do colega. Thomasin vive um isolamento diferente: primeiro, sua família é privada do convívio em sociedade e obrigada a viver no meio da floresta. Mesmo vivendo com sua família, ela se sente uma estranha no meio deles, que em determinado momento a tratam como uma ameaça. Ou seja, estamos falando de isolamento dentro do isolamento.
Os dois protagonistas, Thomas e Thomasin, passam seus respectivos filmes em busca de respostas e autoconhecimento diante de situações cada vez mais sobrenaturais. A diferença é que, enquanto a trajetória de Thomasin está em ascensão, a de Thomas está em declínio. Isso sem contar a presença dos animais que estão ali para testá-los: a gaivota caolha de O Farol e o bode Black Phillip de A Bruxa.
Muitas pessoas poderão torcer o nariz, assim como em A Bruxa, justamente pelo filme não se encaixar em um padrão de gênero. Estamos falando de um drama, com suspense, com fantasia, com terror psicológico e até com respingos de comédia. É justamente isso o que torna O Farol tão rico e surpreendente, proporcionando uma experiência realmente original para quem o assiste.
Além disso, há todo o trabalho da profundidade de personagens, interpretada de forma brilhante por Willem Dafoe e competente por Robert Pattinson. Os diálogos nem sempre são os mais brilhantes, mas ajudam a construir a relação dos personagens para melhor entendermos o desfecho da trama e as decisões que foram tomadas ali.
Há um trabalho excelente no visual do filme, envolvendo enquadramento, fotografia, design de produção e edição. Há tomadas com uma simbologia muito forte, como quando Ephraim entra no quarto, aparentemente sozinho, até que Thomas sai de trás de uma coluna que o ocultava completamente. Há muito simbolismo e margem para interpretação somente nisso.
A opção do preto e branco e disposição 4:3 ajudam a dar um tom ainda mais sombrio e claustrofóbico à trama, lembrando em muitos momentos o expressionismo alemão do início do século XX. Tomadas abertas em câmera parada, em que as coisas simplesmente acontecem, ajudam tanto no sentimento de isolamento como no de desconforto para o espectador em algumas situações.
A mixagem do som é outro ponto que, curiosamente, me chamou a atenção desta vez. Há uma jogada muito inteligente entre trilha sonora e os efeitos de áudio, principalmente no que diz respeito à montagem destes elementos. Novamente, ajuda a criar o clima e a dar ainda mais simbologia ao que se vê em tela.
É uma pena que um filme tão rico não tenha recebido mais reconhecimento, tanto pela sua distribuição nos cinemas como pela amarga única indicação ao Oscar 2020. Para quem gosta de histórias densas, personagens abismais e uma boa dose de desgraçamento, é uma produção imperdível que se posiciona entre as mais interessantes de 2019.
Nota: