Um dos filmes mais elogiados do ano vem da Coreia do Sul e é cheio de significados. A explicação do filme Parasita vai muito além do que a mera história de duas famílias de lados opostos da pirâmide social. Uma trama que não dá pra classificar muito bem como comédia, suspense ou drama, o diretor e roteirista Bong Joon-ho faz uma crítica ácida aos verdadeiros parasitas da sociedade.
Primeiro vamos falar do filme que todo mundo viu: a família Kim tem uma rotina miserável, vivendo amontoada em um semiporão de uma área pobre da cidade. O pai Ki-taek (Kang-ho Song), a esposa Chung-sook (Hye-jin Jang) e os filhos Ki-woo (Woo-sik Choi) e Ki-jung (So-dam Park) trabalham montando caixas de papelão para uma papelaria local.
A sorte da família pode mudar quando o filho Ki-woo recebe uma oportunidade de trabalho de um amigo como tutor de Inglês para uma moça rica. Mesmo sem qualificação universitária, ele forja um diploma com a ajuda da irmã e basta isso e a indicação do colega para que ele consiga o emprego.
A família rica em questão são os Park, que vivem em uma luxuosa casa que pertencia a um arquiteto famoso. A mãe da família Yeon-kyo (Yeo-jeong Jo) tem uma aparência impecável mas transparece bastante ingenuidade e admiração por tudo o que seja relacionado aos Estados Unidos e à língua inglesa. Não demora muito para que Ki-woo perceba isso e logo consiga um emprego para a irmã “Jessica”, isso, lógico, sem declarar o parentesco. Ela trabalharia como tutora de artes do caçula, em quem a mãe enxerga algum tipo de talento.
Não satisfeita com os dois empregos, os Kim ampliam suas possibilidades de renda conseguindo empregos para o pai, como motorista do patriarca Dong-ik (Sun-kyun Lee) e para a mãe, como governanta. Até aqui tudo se parece com apenas mais uma história de ascensão social e contraste entre ricos e pobres. Mas isso toda novela da Globo mostra. O que torna Parasita um filme tão afiado e completo é o que vem a seguir.
Para entender melhor o que Bong Joon-ho critica em seu filme, é preciso conhecer um pouco melhor a sociedade coreana. Em poucas décadas a Coreia do Sul passou de um país devastado pela guerra para uma potência mundial. A economia do país cresceu a olhos vistos, mas os números não fazem justiça à desigualdade social que permeia os coreanos.
Para se ter uma ideia, metade dos coreanos com mais de 65 anos de idade vivem na pobreza, apesar da sua expectativa de vida estar subindo. Como o país “vai bem”, os preços acompanham a bonança, resultando em moradias e aluguéis caros, que não acompanham a realidade salarial de boa parte dos jovens.
Mas esta realidade não interessa quando o assunto é a imagem que a Coreia do Sul busca manter, de um país próspero e fortemente influenciado pela cultura norte americana desde o fim da guerra. Isso fica bem evidente na forma em que os Park são retratados, contratando seus prestadores de serviço com muito mais base na indicação e na aparência do que no conteúdo. Interessa mais “quem eles conhecem” do que “o que eles conhecem”.
Ao assistir pela primeira vez a Parasita, temos uma primeira impressão de quem é o objeto do título do filme:
Os parasitas são a família Kim: logo de cara já percebemos que os protagonistas não são flor que se cheire (trocadilho intencional com o que os Park falam do cheiro deles). No trabalho da montagem de caixas eles são desleixados e ainda tentam tramar para conseguir o cargo de um dos funcionários. O fato de eles forjarem documentos e mentirem para conseguirem um status melhor também dificulta que o espectador simpatize com eles. A linguagem corporal e a metáfora que é feita com baratas (Kafka curtiu isso) também os coloca como seres rastejantes, quase como insetos que passam por qualquer frestinha e se escondem em qualquer lugar.
Os parasitas são a família Park: conforme a história avança e algumas reviravoltas ocorrem (eu juro que vou tentar ir até o final do post sem spoilers), começamos a ver os Park de forma diferente. Mais do que somente ingênuos, eles são vazios, guiados pelo ideal oco das aparências. Além disso, eles mostram zero empatia com as pessoas que trabalham “lhes servindo”, fazendo questão de manter esta distância entre “nós” e “eles”. Não quer dizer que eles o façam por mal, mas eles aproveitam sua condição privilegiada para manter o seu status, acreditando que para estarem por cima, alguém necessariamente precisa estar por baixo.
Os parasitas são os homens: esta aqui é até uma crítica mais sutil, mas que também diz respeito ao filme. Perceberam como a Sra. Park faz de tudo para agradar o seu marido e o seu filho, sem ligar muito para a menina? O menino é visto por ela como um gênio em ascensão e a filha é quase que ignorada. Além disso tem toda a conversa do Sr. Kim com o Sr. Park sobre “a sua esposa não sabe cozinhar, nem lavar roupas e, ainda assim, você a ama”. Tem até uma outra personagem (que eu não vou dizer quem é por motivos de spoiler) que passa anos sustentando o marido clandestinamente.
Além de toda esta mensagem nem tão óbvia como o espectador imagina, Parasita consegue se consolidar como um dos melhores filmes de 2019 pela sagacidade do roteiro e também pelo cuidado técnico tanto de fotografia como de edição e direção. Do roteiro não podemos falar muito porque qualquer spoiler pode estragar a sua experiência, mas pense que plot twist é feijão com arroz perto do que este filme entrega.
Algo que me chama bastante a atenção em Parasita é que tudo é muito verticalizado para passar a mensagem da discrepância social. Pense que os Kim vivem no inferno: um semiporão, com uma pequena janelinha em que só se vê no nível da rua (que mais se parece um bueiro) e, como se isso não fosse suficiente, eles ainda moram na parte mais baixa da rua. Já os Park vivem no paraíso: uma luxuosa mansão localizada na subida de um morro e que, mesmo dentro da própria casa, ainda há diferentes andares para deixar bem claro quem anda nos pavimentos superiores e quem anda nos inferiores. Há também uma janela, só que esta muito maior e com vista para um belo jardim.
O filme está causando um buzz nos Estados Unidos e muito já se fala sobre a possibilidade de Oscar. Parasita é a aposta da Coreia do Sul na categoria de Filme Estrangeiro e acho muito difícil que alguém ameace esta possibilidade. Mas também já se cogita a chance de este ser o primeiro filme em língua não-inglesa a levar na categoria principal. Quanto a isso eu já tenho minhas dúvidas, não pela falta de mérito do filme, mas pela mente fechada da própria Academia. O próprio diretor Bong Joon-ho, quando questionado da possibilidade, afirmou que “o Oscar nunca foi uma premiação para o cinema mundial, ele é bem local”. A julgar pela última edição que entregou a principal estatueta para o conforto americano Green Book em detrimento de Roma, ele tem muita razão.
Com ou sem Oscar, Parasita deixa seu recado e sua reflexão sobre os papéis das pessoas na sociedade e também sobre o cinema em si. Ele é uma lembrança que ainda é possível se destacar não falando inglês e com um roteiro que não seja um remake, reboot ou continuação. Ao surpreender e provocar diferentes reações no público, convidando à reflexão, Bong Joon-ho presta um grande serviço ao cinema mundial e nos dá a esperança de que mais cineastas e estúdios invistam na originalidade. Há público para isso.
Nota:
Imagens: IMDb