Críticas

Psicopata Americano | O livro, o filme e AQUELE final

Já faz 20 anos que Psicopata Americano foi lançado nos cinemas e até hoje as discussões em torno da produção se mantêm vivas. Agora, o debate ganha ainda mais embasamento com o lançamento do livro de Bret Easton Ellis pela DarkSide® Books, possibilitando a muitos fãs conhecer o material inicial. Afinal, o filme é mesmo aquilo tudo? Patrick Bateman merece a nossa atenção? É tudo mais uma desculpa pra enaltecer o machismo ou a história tem algo a mais a dizer?

Em primeiro lugar vamos recapitular a história: com narração em primeira pessoa, Psicopata Americana nos apresenta ao dia a dia de Patrick Bateman (Christian Bale), um playboy de Wall Street que tem tudo do bom e do melhor, é admirado por todos, mas ninguém sabe que ele é um serial killer. Quando não está ostentando seus ternos caríssimos, malhando na academia ou devolvendo fitas na locadora, ele tortura e mata mulheres.

Comparação entre o livro e o filme de Psicopata Americano

Relembrado isso, vamos passar às comparações entre o livro e o filme. É claro que qualquer obra de 400 e poucas páginas que seja adaptada para um filme de 2h perderá conteúdo. É tudo uma questão de física: simplesmente não cabe. As roteiristas Mary Harron (que também dirigiu o filme) e Guinevere Turner (que faz uma ponta) precisaram fazer escolhas para a telona, sem que isso prejudicasse o entendimento da história.

A adaptação de um livro que já era considerado misógino há quase uma década por duas roteiristas mulheres é algo significativo. Uma das principais diferenças entre o livro e o filme de Psicopata Americano está justamente nas cenas mais gráficas, das torturas, estupros, mutilações e assassinatos – não necessariamente nesta ordem. O filme não apagou completamente estas passagens, até porque isso comprometeria a fidelidade à obra, mas não há dúvida que diminuiu e muito a violência que se vê.

Há sequências no livro que eu li horrorizada, e olha que já li coisa bem pesada, inclusive de casos reais. Fãs de Friends irão entender: sabe quando Joey colocava O Iluminado na geladeira porque não conseguia mais ler de tanto terror? Eu tive vontade de colocar Psicopata Americano na geladeira algumas vezes, só tive medo de talvez encontrar uma cabeça lá dentro também. Mesmo que você já tenha lido bastante coisa absurda no campo do gore, esteja avisado de que o negócio aqui é pesado. Não recomendo lanchinhos durante ou logo antes da leitura.

Ao deixar estas passagens meramente subentendidas, o filme perde um pouco o caráter chocante da história, tornando Patrick Bateman um personagem um pouco mais caricato e, talvez, menos desprezível aos olhos do público. Porém, até alguns dos detalhes que o tornam uma personalidade quase cômica também se perderam um pouco: a superficialidade de Bateman.

No livro há páginas em que praticamente metade do conteúdo diz respeito a nomes de marcas. Ele não apenas faz questão de salientar tudo o que ele está vestindo e os acessórios que está usando, mas também aponta tudo isso em cada personagem que entra em cena, fazendo das marcas uma espécie de julgamento social, de quem vale mais ou menos. O filme até tem um pouco disso, mas não se torna algo tão inerente e natural ao personagem.

Mas afinal, qual é a moral de Psicopata Americano?

Muita gente até hoje enxerga o filme e o livro como uma forma de enaltecer a masculinidade tóxica e mais uma desculpa para violentar mulheres em narrativas – seja no livro ou no filme. Eu confesso que enxerguei o filme desta forma por muito tempo, mas um olhar um pouco mais cuidadoso, uma extensa pesquisa no tema e, claro, a leitura do livro de Bret Easton Ellis mudaram um pouco a minha opinião.

Psicopata Americano é uma sátira. Não o tipo de sátira que a gente vê no Saturday Night Live ou no Zorra Total, mas uma crítica muito mais sutil e com endereço certo: a sociedade de forma geral. Logo no começo da história Patrick Bateman verbaliza que ele é um achado, que a sociedade não pode se dar ao luxo de perdê-lo. Claro, quando sabemos do seu lado sombrio discordamos disso, mas o pior de tudo é que isso faz sentido.

Não importa que Bateman mate prostitutas, mendigos, ex-namoradas e colegas de trabalho. Ele ainda é um modelo para muitos homens, que sonham em chegar ao seu patamar. A sociedade enaltece este tipo de gente de uma forma tão absurda que, se todos os crimes que ele cometesse fossem verdade (momento teoria!), ele ainda conseguiria escapar.

 

Um dos toques mais inteligentes de Ellis na história é colocar a narração em primeira pessoa: ele coloca o leitor na cabeça de Bateman. Ao mesmo tempo em que criamos uma indesejada empatia com o personagem, sabemos que ele não é uma fonte confiável. Afinal, todos os crimes que ele cometeu aconteceram mesmo? Quem poderia prová-los?

Resumidamente, se olharmos para Psicopata Americano sob esta ótica, ele não é uma celebração da masculinidade tóxica. Ele é um alerta quanto à celebração da sociedade em relação à masculinidade tóxica. Afinal, quantos Patricks Batemans existem entre nós e por quanto tempo vamos permitir que eles escapem impunes de seus crimes?

E aquele final?

[spoilers óbvios a partir daqui]

O final de Psicopata Americano pode ser frustrante para uns e genial para outros. Após uma noite em que o cerco parece realmente ter se fechado para Patrick, ele precisa empreender em fuga, enfrenta policiais e, no filme, isso resulta até em explosões de veículos. Essa sequência leva a muito mais mortes e de forma improvisada, algo que não é tipico dele. Encurralado, ele liga para seu advogado confessando todos os seus crimes, incluindo o assassinato de Paul Allen.

Só que isso não leva a nada. A história acaba exatamente como começou: com Patrick discutindo banalidades em um happy hour com seus amigos. Quando ele encontra casualmente com o seu advogado e menciona a ligação, o advogado apenas ri do absurdo da história. Além disso, ele diz que se encontrou com Paul Allen (Jared Leto) recentemente e que era óbvio que Patrick não o havia assassinado. Ou seja, o protagonista sai ileso, impune e absolutamente nada na sua vida muda. No começo do filme Patrick diz que a sociedade não poderia se dar ao luxo de perdê-lo e este final confirma isso: homens como ele passam a vida inteira cometendo atrocidades e não são punidos por isso.

No entanto, a resposta do advogado põe em dúvida tudo o que havia acontecido aqui. Aliás, é o último sinal para sacramentar a desconfiança dos atos de Bateman. No filme esta desconfiança é muito mais aguçada do que no livro, que inclui algumas testemunhas – mas, ainda assim, seriam estas testemunhas reais ou fruto da imaginação de Bateman? A própria sequência de fuga do assassino que começa com uma tentativa de “depositar” um gatinho num caixa eletrônico se desenrola para algo absurdo, digno de filmes de ação. Algo que desperta a incredulidade do próprio protagonista, como naquela explosão de carro.

Outra diferença do filme para o livro é que a secretária de Patrick, Jean (Chloë Sevigny), encontra uns desenhos bem perturbadores de seu chefe, com representações dos crimes supostamente cometidos por ele. No livro rola toda uma situação de aborto que a gente também não tem certeza quanto à concretização. Eu entendo esta descoberta dos desenhos como a única “desmascarada” que Bateman terá ao longo de toda a trama e mais um indicativo de que provavelmente a maioria – se não todos – os crimes cometidos por ele nunca saíram de sua imaginação. Em vez de torturar e matar ele simplesmente desenhou este cenário. Embora ainda não determine exatamente o que é fato e o que é alucinação, ficou um pouco pedagógico demais para a ambiguidade proposta por Bret Easton Ellis. Não ficou necessariamente ruim, só não ficou necessário.

Afinal, qual é o melhor?

Na primeira vez em que assisti a Psicopata Americano não fiquei muito impressionada com o filme. Não por ser um filme datado, mas por me parecer tão superficial quanto o próprio Bateman. Ler o livro alguns anos depois foi uma experiência totalmente diferente: você entende melhor quem é o protagonista, do que ele é capaz e você fica muito mais em dúvida quanto ao final – o que eu considero algo bom neste caso. Ler o livro é infinitamente mais difícil do que assistir ao filme, porém, ao mesmo tempo é muito mais fascinante e gratificante. Assistir ao filme depois da leitura me fez ter uma percepção bem diferente da história e do protagonista, mas ainda parece que falta algo ali.

Se você já se considera um fã do filme, ler Psicopata Americano se torna uma experiência muito mais recompensadora. Você não apenas revisita o universo de Patrick Bateman, você mergulha muito mais profundamente nele, conhecendo muito mais nuances do personagem e manifestando sentimentos muito mais antagônicos em relação a ele. Ambas as obras têm qualidade e merecem aquela conferida, mas com o livro a experiência é muito mais completa e o desgraçamento é garantido. Gostamos assim.

Nota do filme:

Imagens: Zinema / Lions Gate / DarkSide® Books

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