Hereditário | Entendendo o filme

    Hereditário


     

    Um filme que me faz ficar pensando nele, ruminando a história e revisando cada pedacinho de informação não pode ser ruim. É exatamente essa a sensação ao sair do cinema após assistir a Hereditário. Se você já viu, sabe muito bem o nível de desgraçamento ao qual eu me refiro. Se você ainda não teve a oportunidade, prepare-se para uma das produções mais WTF que Hollywood entregou neste ano.

    Explicar o filme é inevitavelmente cair em território de spoiler, mas eu vou sinalizar tudo bonitinho aqui pra quem ainda não viu poder ter uma experiência completa 😉
     


     

    O filme já começa no funeral de Ellen, uma mulher que conviveu com demência ao longo dos últimos anos de vida e que nunca teve uma relação muito próxima com sua filha Annie (Toni Collette), como a própria menciona durante o funeral. Annie é mãe de Peter (Alex Wolff) e de Charlie (Milly Shapiro) e estavelmente casada com Steve (Gabriel Byrne). Fora a morte da avó, tudo parece bem.

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    Lógico que coisas estranhas começam a acontecer após o enterro (afinal, isso aqui é um filme de terror). Annie se concentra no seu trabalho em construir casinhas-modelo super detalhadas, tenta revirar as coisas da falecida mãe uma vez, mas após algumas coisas estranhas acha melhor deixar aquele quarto trancado. Paralelamente, ouvimos uma conversa estranha entre Steve e a galera do cemitério sobre uma tal “violação”. Não precisa ser muito gênio pra saber que se trata da cova da sogra dele.

     

    – Alerta de spoiler! Se você não viu o filme, leia somente após o aviso de fim de spoilers! –

     

    A coisa fica ainda mais tensa quando o roteiro tem um plot twist duplo carpado decapitado: Peter pede para ir a uma festinha e Annie insiste que ele leve sua irmãzinha Charlie, “para garantir que ele não beba”. Ele não bebeu, mas no que ele se junta com os amigos pra fumar maconha, Charlie come um bolo que não tem maconha, mas algo muito pior (pelo menos pra ela): nozes (a semente, não as árvores). Acontece que Charlie é alérgica e sua garganta começa a fechar. Com pressa para levá-la ao hospital, Peter pisa no acelerador, desvia de um cachorro no meio da estrada e a coisa toda fica ainda pior pelo fato de que Charlie estava com a cabeça pra fora do carro, pra tentar respirar. Lembra quando você pegava o ônibus da escola e a professora sempre falava da terrível história do menino que colocou o braço pra fora e ele foi arrancado? Então, a diferença é que o que Charlie botou pra fora foi a cabeça.

    Esta é a sequência mais eletrizante do filme e, assim como a Charlie em sua reação alérgica, não estranhe se você também ficar sem ar. A coisa fica ainda mais WTF quando Peter simplesmente volta pra casa e vai dormir. É. Assim. A descoberta de Annie sobre o corpo da filha ainda vai me aterrorizar por muito tempo.

    Após a morte de Charlie a coisa fica ainda mais esquisita quando Annie conhece Joan (a ótima Ann Dowd) em um grupo de apoio para pessoas passando pelo luto. Joan perdeu o neto em um acidente e diz a Annie que, por meio de um ritual, consegue fazer contato com ele. Apesar de apavorada e relutante, Annie faz o mesmo pra tentar contato com Charlie. Preciso nem dizer o quão péssima é essa ideia, né?

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    O ritual para falar com Charlie afeta particularmente seu filho Peter e, após uma sequência de acontecimentos no filme, que fica cada vez mais mindfuck, Peter é “coroado” como a “encarnação” do Rei Paimon. Trata-se de uma divindade aqui relacionada ao ocultismo (tanto é que chamam de um dos reis do inferno) adorada por Ellen, Joan e mais alguns “seguidores” que aparecem em cena. Sobe créditos. Sua cabeça está oficialmente desgraçada.

     

    Que final WTF foi esse? (ainda tem spoilers)

     

    Apesar do filme lidar com coisas esquisitíssimas e desconfortáveis o tempo inteiro, o final dá um salto numa direção que ninguém esperava. E nem por isso ele pretende se explicar muito, o que torna ainda mais importante lembrar dos sinais deixados pelo roteiro ao longo do filme:

    Evidência 1 – Annie não conhecia os amigos da mãe no funeral: logo de cara a gente vê que Annie sabia que sua mãe mexia com algo estranho. A inserção de Joan na história, com um capacho “igual aos que a mãe de Annie fazia” já dá a dica de que estas duas personagens (Ellen e Joan) possuem algum tipo de vínculo. Depois da invocação de espíritos, a coisa faz ainda mais sentido.

    Evidência 2 – a estranha ligação de Charlie e Ellen: bem no comecinho uma informação muito importante passa quase que despercebida: Annie diz que protegeu Peter da mãe dela, mas que ela meio que “deu” Charlie a Ellen. Fazendo a ligação com os lances de ocultismo, culto e tals, é quase como se Charlie fosse o “bebê de Rosemary”, criada desde o início com um propósito macabro.

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    Evidência 3 – decapitações e mais decapitações: um dos primeiros momentos esquisitos é quando Charlie pega um passarinho morto e corta a cabeça dele, para levar só o corpo. Não demora muito e ela própria é decapitada, o que desencadeia todo o processo de seu irmão se tornar o hospedeiro do Rei Paimon. Em determinado momento, o corpo de Ellen aparece decapitado e a própria Annie, em meio a uma possessão demoníaca, corta a sua cabeça. Corpos decapitados nada mais são do que o sacrifício desta entidade, que, juntando ao item 2, leva à conclusão de que a hospedeira original do Rei Paimon era a pequena Charlie.

    Evidência 4 – Paimon é uma entidade masculina: ao revirar os livros de ocultismo da mãe, Annie lê sobre o tal do Rei Paimon e descobre que, por se tratar de uma entidade masculina, o ideal seria que ela encarnasse em um corpo masculino. Ou seja, Charlie nunca foi uma hospedeira ideal, mas, como Annie escondeu Peter de sua mãe, Ellen nunca conseguiu iniciar o processo com ele. Charlie foi utilizada como hospedeira temporária até que o culto conseguisse mobilizar a transferência da possessão para o corpo de Peter.

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    Evidência 5 – Peter não foi a primeira tentativa do culto: na primeira vez que Annie vai ao grupo de apoio para falar sobre a morte da mãe, ela comenta que teve um irmão com esquizofrenia e que se matou. Ela disse que a mãe tentou “colocar alguém no irmão dela”. Ou seja, Ellen já tentou passar o Rei Paimon para o próprio filho. Como o plano não deu certo, tentaria no neto. Como Annie provavelmente já sabia de alguma coisa sobre os rituais da mãe, escondeu Peter. Mas não fez o mesmo com Charlie, que beeem no comecinho do filme fala que a avó “queria que ela fosse um menino”.

    Evidência 6 – o culto premeditou todos os eventos do filme: lembra aquela primeira aula em que Peter aparece quando os alunos comentam a história de Hércules e debatem se é mais ou menos deprimente o fato de ele ser manipulado pela vontade dos deuses. E é aqui que  todas as analogias das casinhas do trabalho de Annie fazem sentido. Não são poucos os momentos em que a família é retratada ou confundida como bonecos, como meros objetos que podem ser manipulados. Tudo o que acontece no filme tem a motivação de fazer a transição do Rei Paimon do corpo de Charlie para o corpo de Peter e não há nada que Annie ou sua família possam fazer para evitar.

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    – Fim dos spoilers. Pode ler sem medo! –

     

    Mas afinal, Hereditário é bom? 

    Numa primeira assistida é difícil morrer de amores pelo filme até porque nem tudo o que está ali é imediatamente compreensível. Porém, é uma daquelas produções que você vai querer saber mais. Você quer entender WTF aconteceu ali. Você quer que aquele final faça sentido. Só por isso o filme já ganha alguns pontos pela sagacidade do roteiro.

    Numa primeira vista ele parece mais um filme de fenômenos paranormais que assombram uma família, mas não se deixe enganar: a ambição do diretor e roteirista Ari Aster vai além. Não é aquele terror baseado em jump scares (acho que o filme inteiro tem só um), mas sim, na quebra de expectativas e em situações tão bizarras que você vai usar todo o seu arsenal de caretas durante as pouco mais de 2h de filme (eu sei que eu usei).

    Uma boa sacada foi colocar tudo sob o ponto de vista das vítimas e sem nenhum personagem providencial que aparece pra explicar tudo. Ninguém vai explicar nada. Você só vai ter algumas pistas do que está acontecendo baseado nas descobertas que os próprios personagens fizerem e é por isso que o final é um soco tão forte quanto incompreensível.

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    Some um roteiro complexo a um trabalho sensacional de direção. Os enquadramentos e movimentos de câmera não estão ali por acaso, tudo ajuda a contar a história. A analogia entre a casa da família e as casinhas-modelo construídas por Annie jogam muito com a mente do espectador, que muitas vezes é pego de surpresa sobre o que é realidade e o que não é. A alternância entre momentos de silêncio e de pavor fazem com que a história seja uma verdadeira montanha-russa, só que nesse caso você está vendado, sem saber pra onde ela vai e o carrinho para sem desacelerar.

    Agora, precisamos falar sobre a atuação da Toni Collette! Que ela é uma atriz maravilhosa todo mundo sabe, mas a atuação dela vai muito além da mãe de família em luto e histérica. Os saltos de reclusão a completo desespero são tão bruscos que em poucos segundos ela parece uma pessoa completamente diferente. O resto do elenco também desempenha um bom trabalho, mas Toni Collette dá a sua alma aqui (trocadilho proposital).

    Enfim, se você gosta de filme de terror, está cansado da fórmula dos jump scares e gosta de ter as ideias desgraçadas por um filme, Hereditário é provavelmente a melhor pedida do ano. Só tente não perder a cabeça.

    Nota:

     

    Trailer de Hereditário

    https://www.youtube.com/watch?v=aVqszEgRYsc

    Imagens: Reid Chavis

     


     

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