Desde que foi lançado para a crítica, o filme Mãe!, de Darren Aronofsky tem gerado todo tipo de reação: desde a euforia de críticos que o classificaram como um “clássico instantâneo” até o público que não mediu xingamentos e saiu no meio da sessão. Neste ponto já podemos dar crédito ao filme: ele vai te fazer sentir! Pode ser admiração ou raiva, mas ele não vai te deixar indiferente.
O que faz muita gente torcer o nariz para o filme é achá-lo um “choque a qualquer custo”, desconexo, difícil de entender e culpam até o trailer, que vendeu um filme de terror em vez daquilo que a audiência assistiu. Mas afinal, o que é aquilo que a audiência assistiu?
É muito difícil definir um gênero para Mãe! Ele não é um enlatado da geração Netflix que está acostumada com o “se você assistiu X pode se interessar por Y”. Não é assim que o filme funciona. Assim como é igualmente complicado produzir um trailer sem entregar a história aqui. Fazer uma crítica nem se fala! Não tem como escapar dos spoilers.
Antes que eu entre na crítica em si, vamos passar uma breve explicação da história, pois isso está diretamente ligado à experiência que você vai ter ao assistir Mãe! Eu tenho uma teoria de que não existem pessoas que gostaram e não gostaram, existem pessoas que gostaram e pessoas que não entenderam. Se depois que você entender ainda não gostar, tudo bem, gosto é pessoal mesmo (alô comentários na Internet). Mas não despreze o que você não entende (até porque a maioria das guerras se dá por causa disso).
E gente, não precisa entender tudo logo de cara não, viu? Tem filme que serve pra deixar todo mundo com pulga atrás da orelha mesmo. Eu precisei ler uma porrada de texto pra entender Cidade dos Sonhos do David Lynch (e acho que até hoje tem coisa que eu não entendo). Não é feio perguntar.
A partir daqui o texto trará spoilers, então se você quer ir realmente cru para o cinema, pare aqui (mas volte depois).
Versão bíblica
Tudo não passa de uma baita alegoria para contar a história da Bíblia / história da humanidade. Os personagens não possuem nomes, mas não é difícil identificar o papel de cada um na história. Javier Bardem começa o filme colocando um cristal numa estante e meio que “criando” toda a casa. Ele é o criador, ou seja, Deus. Sua esposa, interpretada pela Jennifer Lawrence, é creditada apenas como Mãe, mas não demora muito pra gente perceber que ela é a Mãe Natureza. A casa é o planeta Terra. Boom! Esse é o básico pra poder aproveitar o filme numa boa, a partir daqui os spoilers ficam mais detalhados, então ainda dá pra fugir.
O criador e a mãe moram em uma casa isolada, mas um estranho (Ed Harris) aparece do nada achando que aquilo era uma espécie de pousada. Temos aqui o nosso Adão, que logo será acompanhado de sua esposa (Michelle Pfeiffer), ou seja, Eva. Os dois são convidados super desagradáveis, que não sabem respeitar as regras da casa, fazem o que bem entendem e até entram na sala proibida do escritor (paraíso) e quebram o seu cristal (fruto proibido). Ah sim, o criador é um escritor com bloqueio criativo neste ponto da história. Quem aí arrisca um palpite do livro que ele está tentando escrever?
A partir da quebra do cristal a treta está plantada e aparecem os filhos do casal. Quem conhece um mínimo da história da Bíblia até prevê o que vai acontecer aqui: por causa dos ciúmes, um assassina o outro (Caim e Abel mandam lembranças) e o assassinato marca a casa permanentemente. Cada desequilíbrio deste tipo é sentido pela Mãe, que possui uma conexão especial com a casa.
À medida em que a casa fica cheia de convidados indesejáveis e desagradáveis ela própria entra em colapso e, por causa dos “convidados”, há um rompimento dos canos de água, inundando o lugar. As pessoas vão embora e temos aqui o nosso dilúvio. Fechamos aqui nosso Antigo Testamento.
Deus e a Mãe geram uma criança e a história toda muda a partir daqui, com o nosso escritor finalmente produzindo a sua obra. Ao publicá-la, ele fica maravilhado que cada leitor interpreta de forma diferente (religiões) e o que se vê é a sequência mais horrendamente claustrofóbica e uma das mais bem orquestradas da história do cinema. Acompanhamos praticamente todo o curso da humanidade e todos os seus horrores, todos acontecendo dentro da casa. A partir daqui não há muito o que explicar porque o filme chega a ser bem literal.
Fanatismo religioso
Na interpretação bíblica do filme podemos interpretar todas estas pessoas chegando à casa como fanáticos religiosos. Afinal, logo após as diferentes interpretações do livro começam as guerras. Há uma cena após o nascimento do filho deles que é extremamente cruel e gráfica, mas é apenas uma demonstração literal do que a religião tem feito há milênios.
Versão ecológica
A influência da Bíblia é gritante na sequência de eventos, mas esta não é a única interpretação possível. Há um viés claramente ecológico, mostrando o quanto os seres humanos perturbam o meio-ambiente e gradativamente acabam com o planeta. Uma das cenas mais angustiantes, nesta segunda parte, é ver aquele monte de gente dentro da casa e uma fila gigante lá fora querendo entrar. As pessoas que estão dentro não estão preocupadas em como acomodar todo mundo, elas só querem garantir o seu lugar, levar o que acham que é seu por direito, redecorar a casa sem permissão e deixar a sua marca sem necessidade. Fica o questionamento: não somos todos hóspedes indesejáveis, afinal de contas?
Versão do relacionamento abusivo
Outra questão que pode ser levantada é justamente do relacionamento entre a Mãe e o criador. Apesar de serem um casal, as pessoas acham que ela é filha dele, por ser aparentemente mais nova. Mas eles estão de igual pra igual aqui, inclusive foi a Mãe a responsável por toda a decoração. O criador é um parceiro egocêntrico, egoísta e ausente. Pode perceber: a Mãe se encontra sozinha mesmo quando na presença de seu par. Sobre o comportamento dela em relação a ele vamos à próxima interpretação:
Versão da mãe
Apesar de serem um casal, pode reparar que a personagem da Jennifer Lawrence se comporta como mãe o tempo inteiro: doando-se, arrumando a casa, limpando a sujeira dos convidados… e não recebendo nada em troca. Também é uma visão da ingratidão dos filhos, mais preocupados com os seus projetos e os seus amigos e sem se importar com o sacrifício da mãe.
Mas afinal, é pra tanto?
Quando a crítica exalta demais um filme eu sempre fico desconfiada. Mas deu pra sair do cinema com a rara sensação de que eu vi algo que vai ser estudado e referenciado por muitos anos. Não é sempre que a gente sabe de cara disso, tem filmes que precisam envelhecer para terem o seu valor reconhecido. Felizmente não foi o caso com Mãe!
Fora o roteiro em si, o Darren Aronofsky tem um trabalho certeiro na direção, ao escolher enquadramentos que representem esta claustrofobia e façam com que o espectador veja a história da humanidade do ponto de vista da natureza. É desconfortável? É, mas acredite, não é pior do que a realidade que ele busca retratar.
É muito raro a gente encontrar “cinema arte” em salas mais comerciais, mas é revigorante ver que algumas produções conseguem chegar lá. Há uma diferença clara entre o cinema produto e o cinema como manifestação de arte. É claro que vai ter gente que não vai entender, assim como tem um monte de gente se amontoando em frente à Monalisa pra fazer uma selfie, mas não faz a menor ideia do porquê daquele quadro ser tão importante.
Por isso, assista Mãe! sabendo que vai ser uma mistura de David Lynch, Roman Polanski e Lars von Trier. Não vai ser fácil, não vai ser mastigado, mas a partir do momento em que você entender a metáfora tudo vai fazer sentido e você conseguirá até prever o que vai acontecer a seguir. E não se engane: não há violência gratuita no filme, há violência gratuita no mundo.
Nota:
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