Você nunca esteve realmente aqui | O negócio aqui é confundir

    Você nunca esteve realmente aqui

     

    Se alguém te disser que o filme Você nunca esteve realmente aqui é maravilhoso e que você vai querer assistir mais vezes esta pessoa pode estar mentindo e falando a verdade ao mesmo tempo. Confuso? Pois é, aquela verdade absoluta dos filósofos do Charlie Brown Jr. se aplica direitinho aqui: o filme não está aqui pra explicar, está aqui para confundir.

    À primeira vista, o filme foca em Joe (Joaquin Phoenix), um veterano de guerra com tendências suicidas, muitos flashbacks perturbadores e que ganha a vida resgatando meninas sequestradas, geralmente quando a família não quer chamar a atenção das autoridades para o caso.

    Você nunca esteve realmente aqui

    A coisa fica mais tensa quando ele pega o caso da jovem Nina (Ekaterina Samsonov), filha de um jovem e promissor senador. Não demora muito para ele se dar conta de que este pode ser seu último caso, uma vez que o resgate da menina deixa uma trilha de várias pessoas brutalmente assassinadas, incluindo a mãe e o chefe de Joe. Aliás, aqui só existem assassinatos brutais, não espere ninguém morrendo pacificamente numa cama (a não ser que essa pessoa tenha morrido com um tiro no olho).

    Paralelamente à jornada de Joe, há incansáveis inserções de cenas perturbadoras que misturam memória, alucinação e realidade. É aquele filme que gosta de te pregar pegadinhas que vão te deixar perguntando “WTF acabou de acontecer?” até cortar para a real sequência de eventos. O comportamento de Joe assim como suas tendências suicidas estão evidentemente ligadas aos seus traumas de infância, mas que também não ficam muito claras e nem fáceis de serem analisadas. Se você espera que o filme junte as peças para fazer algum sentido da personalidade de Joe, prepare-se para se sentir frustrado.

     


     

    Mesmo com o thriller da jornada, a excelente atuação introspectiva de Phoenix e uma trilha sonora que se impõe, eu estaria mentindo se dissesse que é um filme fácil de assistir. A brutalidade das cenas são dignas de te fazer desviar o olhar do filme e a edição flerta com o expressionismo e o surrealismo, deixando a trama um pouco menos acessível e até mesmo aleatória para os mais céticos. Se você julgar o filme apenas pelos eventos que você vê, pode até achar que a obra de Lynne Ramsay é um tanto presunçosa. Se você tentar enxergar além disso, aí temos algo muito mais fascinante.

     

    Afinal, o que está acontecendo em Você nunca esteve realmente aqui?

    [contém spoilers]

     

    À primeira vista, não fica muito claro o motivo do nome do filme ser Você nunca esteve realmente aqui, a não ser pela canção aleatória que um taxista canta durante o filme. Afinal, quem nunca esteve realmente aqui? Joe? Nina?

    Há uma teoria rolando que faz muito sentido e que vai te fazer enxergar o filme de outra forma e desgraçar muito mais a sua cabeça: a teoria do incesto. Não fica muito clara a dinâmica entre Joe e seus pais quando os flashbacks surgem, mas o filme dá algumas pistas de que ele e sua mãe (Judith Roberts) mantivessem uma relação incestuosa.

    Não é por acaso que quando Joe retorna para casa no início do filme sua mãe esteja assistindo Psicose. Não é por acaso que quando ele a coloca na cama ela pede que ele fique “mais um pouquinho”. Se você também curte o clássico de Hitchcock ou assistiu a Bates Motel verá algumas similaridades na relação de Joe com sua mãe com a relação de Norman com Norma, ainda que de forma mais sutil.

    A partir daí muita coisa que a gente viu pode ser questionada, afinal, quando se joga a carta da alucinação tudo passa a ser possível. De acordo com esta teoria, todo o lance de salvar as meninas dos sequestros e abusos não passa de uma fantasia da cabeça de Joe quando ele, na verdade, só queria salvar aquele garotinho que havia sido abusado pela mãe: ele próprio. A fase dele no Iraque nunca existiu e o lance com o martelo é um dos únicos resquícios de paternidade que ele ainda tinha.

    Por que a coisa muda com Nina? Porque ali ele estabeleceu um paralelo entre ela e a mãe dele. Isso fica implícito em uma cena de afogamento com transição entre as duas. A própria morte da mãe teria sido causada pelo próprio Joe neste contexto, para dar espaço à nova figura de mãe que ele projetou, muito mais pura e inocente.

    Você nunca esteve realmente aqui

    O próprio final é questionado. No filme, Joe teria uma alucinação de que ele se mata na mesa de uma lanchonete com um tiro na cabeça. Quando você começa a acreditar que este seria o trágico destino do nosso anti-herói, aparece Nina e diz que os dois devem sair pra aproveitar o dia. Ou seja, tudo teria acabado bem. Mas de acordo com a teoria, o fim de Joe foi exatamente este: o de se matar ali. Todo o epílogo de Nina seria uma projeção para dar a ilusão de um final feliz (mais ou menos como David Lynch já fez em Cidade dos Sonhos).

    Respondendo à pergunta do título, quem nunca esteve aqui era Nina e todas as outras meninas que Joe acha que salvou. Nem o próprio Joe, da forma que ele acreditava, estava realmente ali. Não há redenção, não há salvação, não há um lindo dia. Há apenas o desgraçamento.

     

    [fim dos spoilers]

     

    Com uma temática que lembra bastante Taxi Driver mas que ainda assim consegue imprimir a sua marca, Você nunca esteve realmente aqui é uma produção fora do convencional que pode te atingir de diversas maneiras (provavelmente nenhuma delas muito boa). É o tipo de filme que precisa ser visto mais de uma vez pra ser devidamente compreendido e contemplado. Infelizmente.

    Nota:

    Imagens: © Alison Cohen Rosa | Amazon Studios

     

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