Explicação do filme Midsommar

    Midsommar

    Midsommar é um daqueles filmes que já vem com um objetivo claro: desgraçar a sua cabeça. Este terror rural e psicológico é cheio de pistas, mensagens ocultas e possibilidade de diferentes interpretações. Neste post falamos um pouco sobre cada uma delas:

    Atenção: este post é cheio de spoilers, então sinta-se avisado

    O filme já começa tenso, com a protagonista Dani (Florence Pugh) vivendo uma tragédia familiar: a irmã, que é bipolar, comete suicídio com monóxido de carbono, levando os pais junto. Dani, uma estudante de psicologia, fica órfã e tem apenas o namorado Christian (Jack Raynor) no mundo. Quer dizer, mais ou menos, né? Desde a primeira conversa por telefone com ele a gente já percebe que o cara é bem babacão e ainda tem um monte de amigo dizendo para que ele largue a namorada porque ela seria muito dependente dele. Chernoboy alert!

    Dani e Christian na comunidade de Harga

    Passados alguns meses, Christian e os amigos planejam uma viagem a um festival na Suécia, na comunidade de Pelle (Vilhelm Blomgren), que faz parte do grupo. Christian, como o babaca que é, nem tinha falado nada para Dani. Mas em cima da hora ele meio que a convida para ir junto, para o desgosto de Mark (Will Poulter), que acha que a presença de Dani vai estragar o clima “Eurotrip” da viagem.

    Quando chegam à comunidade eles passam da admiração e curiosidade antropológica para um sentimento angustiante de que não deveriam estar lá – principalmente após um ritual de suicídio de dois anciões da tribo. Após isso, os visitantes começam a desaparecer aos poucos, aumentando a sensação de que há algo errado com as pessoas do lugar, restando apenas Dani e Christian para os rituais finais.

    Mas afinal, qual a explicação do filme Midsommar?

    O roteirista e diretor Ari Aster declarou que a ideia é ser um “folk horror”, ou seja, uma daquelas histórias em que um grupo de pessoas de fora entra para uma comunidade e algumas começam a desaparecer misteriosamente. Para uma análise bem superficial podemos nos contentar com isso, mas há muito mais por trás de tanto desgraçamento.

    Uma das interpretações possíveis é de que se trata de uma fábula em que a princesa é Dani. Tudo começa com uma tragédia familiar – na linha de CinderelaBranca de Neve – para que ela passe por provações pessoais e no final seja coroada rainha. É também uma história de transição, de uma Dani que vivia no inverno (estação de quando a família morreu), na depressão e em um relacionamento tóxico, para uma Dani que vai para o verão em uma terra onde o Sol permanece brilhando durante todo o dia e ela encontra uma nova família.

    Dani é coroada Rainha de Maio em Midsommar

    Pode reparar: Dani começa o filme totalmente sozinha – isolada da família e com um boy lixo que oferece zero apoio para ela. No final ela é coroada rainha em uma comunidade que não apenas a acolhe, mas que compartilha suas dores por completo – prova disso é a cena de todas as mulheres chorando junto com ela. Tem a ver também com a jornada emocional da personagem, que no começo engole o seu luto, sempre indo soluçar em banheiros, longe do grupo, e no final coloca toda a dor pra fora em um choro tão desesperado que parece ser um expurgo de tudo o que ela passou até aqui. Se você estiver passando por uma bad, chora junto que ajuda. Como diria Marília Mendonça: “ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer”.

    Nestes termos, podemos dizer que o filme é sobre libertação, sobre se livrar de um relacionamento codependente e encontrar o seu verdadeiro lugar no mundo. No entanto, uma visão um pouco mais pessimista irá interpretar que ela apenas saiu de um relacionamento codependente para entrar em outro: o da comunidade de Harga, que pode ser bem sufocante quando quer.

    Midsommar

    O significado das simbologias de Harga

    Ari Aster contou com a ajuda de especialistas para formular a comunidade de Harga, então, muitos dos rituais (por mais absurdos que sejam) são reais de alguma forma. A primeira coisa que precisamos entender sobre as pessoas que vivem lá é que o conceito e família deles é a própria comunidade: crianças são criadas por todo mundo e a procriação é vista como algo ordenado, pelo bem da sobrevivência do grupo. Tudo é feito pelo bem comum, inclusive sacrifícios, seguindo o ciclo que eles acreditam.

    Pelle explica aos estrangeiros algo essencial para entender Harga: o ciclo da vida dividido em 4 estações do ano: a infância é a primavera (do nascimento aos 18 anos), o verão (dos 18 aos 36 anos) serve para que as pessoas viajem em peregrinação pelo mundo, no outono (36 a 54) elas retornam para trabalhar na comunidade e o inverno (54 a 72 anos) é quando elas lideram a aldeia como anciões. A pergunta do que acontece após os 72 é respondida verbalmente e logo em seguida na prática, com o sacrifício de dois anciões que já cumpriram seu propósito na Terra. Isso explica porque as únicas pessoas na faixa dos 20 e poucos são os visitantes.

    Comunidade de Harga em Midsommar

    Pode reparar que muita coisa em Harga funciona em torno do número 9. O grande banquete é realizado a cada 90 anos e dura 9 dias. Todas as idades das estações do ano são múltiplos de 9, cuja soma dos algarismos também é 9. O significado vem de Odin, principal deus da Mitologia Nórdica, que ficou pendurado de cabeça para baixo durante 9 dias na Árvore do Mundo, para que ele trouxesse sabedoria para o mundo por meio da língua das runas. Aliás, runas são observadas por toda a parte na comunidade.

    Em termos de reprodução o filme também explica como funcionam as regras em Harga: para evitar incesto, pessoas de fora podem ser aceitas para fins reprodutivos. No entanto, o filme mostra que as únicas pessoas de fora que são aceitas para isso são as brancas, com traços que lembrem o do povo nórdico. O próprio grupo de amigos brinca com isso quando tenta justificar a beleza das suecas, explicando que isso acontece porque os vikings sequestraram as mulheres mais bonitas de fora para povoarem suas terras. Aparentemente o povo de Harga segue isso com o que considera beleza. Pessoas de fora que não sigam este padrão, são atraídas somente para fins de sacrifício, como é o caso de Connie (Ellora Torchia) e Josh (William Jackson Harper).

    Grupo de visitantes em Harga

    Incestos também podem ser bem recebidos, desde que cumpram um propósito. Todas as gerações em Harga possuem um oráculo que, segundo eles, precisa estar ligado a um outro plano para servir à comunidade. O outro plano que eles se referem é algum tipo de deficiência mental, conseguida através de relações incestuosas. Ou seja, quando um oráculo morre ele precisa ser “substituído” por outro.

    As pistas estão por toda a parte

    Midsommar faz questão que você consiga entender todas as suas sutilezas, basta estar atento. A pintura que aparece na abertura, por exemplo, conta toda a história do filme, inclusive indicando Pelle como a grande mente por trás de todos os acontecimentos e o desfecho dos personagens. Os pôsteres no apartamento de Dani também dão algumas pistas, com referências ao ciclo lunar e a um urso, que tem um papel importante no sacrifício final. Em Harga também é possível observar algumas imagens com pistas, como o varal que mostrava todo o ritual que Maja (Isabelle Grill) segue para o acasalamento com Christian, além das pinturas no dormitório acima das camas dos personagens, com pistas de seus desfechos.

    Pinturas dão pistas sobre o filme

    Se pararmos para analisar os nomes dos personagens também podemos pescar algumas pistas e até mesmo interpretar o filme como um sacrifício do próprio cristianismo. Com exceção de Connie, todos os personagens possuem nomes com origens hebraicas e de personagens bíblicos. Olha só:

    Dani: vem de Daniel, um profeta cuja fé permitiu que ele saísse ileso de um covil cheio de leões famintos. Soa familiar com o destino da personagem? Além disso, o sobrenome dela é Ardor, um substantivo que significa um intenso estado de transição.

    Christian: este aqui é o mais fácil de todos. O nome é o próprio cristianismo e significa seguidor de Cristo. Mas em vez de ser uma alusão positiva a Cristo, Christian representa tudo o que o cristianismo pode ter de ruim: ele é negligente com a namorada, não a trata bem e tampouco termina com ela, não banca as próprias escolhas e ainda copia o projeto de pesquisa de seu colega.

    Mark: o “tolo”, como se mostra ao longo do filme, também tem seu nome nas páginas da Bíblia. Apesar de Mark vir do deus romano Marte, da guerra, a referência aqui provavelmente vem do primo de Barnabé que saiu em peregrinação com ele, mas que desistiu pela falta de maturidade espiritual. Não coincidentemente Mark é o mais imaturo do grupo e com zero interesse e respeito pelos costumes do local.

    Josh: vindo de Joshua (ou Josué em português), o nome é uma alusão ao sucessor de Moisés, que levou as crianças de Israel à Terra Prometida. Vale lembrar que é o projeto de pesquisa dele um dos principais motivos para a viagem do grupo.

    Simon: na Bíblia, Simão é o homem da multidão que é designado a carregar a cruz de Jesus quando ele não conseguia mais. Simon é o primeiro personagem a desaparecer misteriosamente em Harga.

    Christian. Josh e Mark são nomes bíblicos

    Qual o significado do final de Midsommar?

    Se por um lado o filme explica vários de seus rituais estranhos, dando bastante sentido à história, o final ainda pode ser recebido com bastante confusão, principalmente com a decisão e reação de Dani ao final.

    O ritual da escolha da Rainha de Maio e o sacrifício final são explicados no próprio filme, listando inclusive os motivos de todos os sacrifícios e deixando claro que os estrangeiros só estavam ali para cumprir um papel: quatro deles para puro sacrifício. Dani foi encorajada por Pelle justamente por ele acreditar que ela poderia se tornar Rainha de Maio, poupando-o do sacrifício. Christian só foi para fins reprodutivos e, ao fim, para o próprio sacrifício.

    Dani, Pelle e Christian chegam a Harga

    Com o último sacrifício sendo escolhido pela Rainha de Maio, Pelle provavelmente já tinha vislumbrado que não seria muito difícil fazer Dani escolher o namorado. A relação deles nunca foi boa para ela, fato reforçado por Pelle em determinado momento, sem contar que a comunidade fez de tudo para afastar o casal e dar ainda mais motivos para que Dani tivesse raiva de Christian – inclusive permitindo que ela assistisse ao ritual de acasalamento.

    Segundo as pessoas e Harga o ritual do sacrifício serve para livrar a comunidade de tudo o que há de ruim. Não precisa pensar muito para saber quem era a representação disso ali: Christian não só era um péssimo namorado, que nem lembrava do aniversário da namorada e do tempo de namoro dos dois (4 anos), como também era um péssimo amigo, que chegou até a copiar o projeto de pesquisa de Josh – e ainda se sentindo no direito de ficar ofendido e na defensiva em relação à reação do colega. Um cara destes tem que morrer, não?

    Dani e Christian

    A reação das pessoas que veem o templo amarelo arder em chamas com os sacrifícios ali dentro não são apenas uma resposta à dor que dois dos sacrifícios da própria comunidade estão sentindo no momento. Se a gente observar bem, a linguagem corporal deles lembra bastante uma cena de exorcismo, como se estivessem expurgando todo o mal de dentro deles.

    Levando em consideração o comportamento de Christian e todas as manipulações do povo de Harga, não é difícil entender por que Dani o escolhe para o sacrifício. A risada que ela dá no final pode ser justificada tanto pelos alucinógenos que ela tomou como no reconhecimento do encerramento de um ciclo tóxico na vida dela. Agora Dani é venerada pelas pessoas de Harga e graças a ela o mal está sendo expurgado.

    Sacrifício final de Midsommar

    Mas afinal, Midsommar é bom?

    Com este filme Ari Aster dá um passo a mais em relação a Hereditário, seu filme anterior. Com um terror bem mais perturbador e uma mensagem complexa, ele entrega um ótimo suspense psicológico que é até bem acessível em termos de compreensão. Aliás, meu único porém do filme é que talvez ele tenha se justificado até demais para garantir que ninguém saísse muito perdido dali.

    Em termos de técnica cinematográfica o diretor não poupa detalhes ricos em informações, como os pôsteres, as plantas no apartamento de Dani e toda a simbologia que forma a comunidade de Harga. De forma inteligente ele inclui suas pistas ao longo da história e em alguns planos sequência (não muito longos, mas eficientes), ele mostra o grupo se separando aos poucos – o que num filme de terror nunca é algo bom para o destino dos personagens. Aliás, planos abertos são comuns, mostrando que todo mundo está nessa junto.

    Plano aberto de Harga

    Há também um uso muito inteligente de câmera, edição e efeitos especiais para comunicar o psicológico dos personagens ao público. As cenas sob efeito de alucinógenos sempre têm uma vibração diferente e a sequência da dança para a escolha da Rainha de Maio é uma das mais claustrofobicamente agonizantes que você vai ver. Até eu quase caí no chão de tão zonza que eu fiquei.

    Para quem gosta de filmes menos óbvios, mas ainda assim acessíveis, e entende que terror não é meia dúzia de jump scares, Midsommar é uma ótima opção. Não estranhe se você acabar de assistir ao filme com a sensação de que precisa desver e ao mesmo tempo rever aquela loucura toda. Altamente perturbador. Recomendo.

    Nota:

    Imagens: Merie Weismiller Wallace – © A24


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