Tentar definir a explicação do filme O Poço, disponível no catálogo da Netflix, pode parecer uma tarefa ou óbvia demais ou inalcançável. Isso porque em muitos aspectos o longa espanhol dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia é bem autoexplicativo sobre o que está acontecendo ali. No entanto, se você quiser mergulhar um pouco mais fundo em suas camadas, há diferentes possíveis interpretações para O Poço. Muitas que talvez possam até ir além do que pretendia o roteiro de David Desola.
Resumidamente, o filme se passa em uma prisão vertical chamada de “poço”, com diversos andares (quantos não se sabe ao certo), com duas pessoas por andar. Todos os dias uma plataforma com comida passa por todos os andares, vinda de cima para baixo. Isso dá uma vantagem aos habitantes dos andares mais altos, que encontram um farto banquete e uma desvantagem gradativamente desumana conforme os andares descem, com pessoas que não podem nem contar com os restos por vários dias.
O protagonista é Goreng (Ivan Massagué), um homem que voluntariamente se submete ao poço para deixar de fumar e em troca de um certificado. Mas ele é uma exceção, já que o local serve como uma cadeia, com criminosos sendo punidos por seus crimes. Muito da dinâmica ele aprende com seu companheiro de andar, Trimagasi (Zorion Eguileor), que explica sobre a plataforma de comida e sobre como a cada mês você acorda em um andar diferente. A escolha é completamente aleatória, sem mérito por bom comportamento, apenas com a recompensa de acordar em um andar mais elevado, ou o castigo de acordar em um dos andares de baixo.
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Não há coincidência na expressão “óbvio” ser repetida de forma quase cômica por Trimagasi. O próprio filme faz questão de deixar esta crítica bem escancarada logo cedo: pessoas de cima são privilegiadas e gozam do benefício de ter mais do que os outros. Os de baixo devem se contentar com as sobras (quando sobra). A dinâmica é exposta por Trimagasi logo de cara, quando ele avisa que as pessoas de cima não irão ouvi-los, uma vez que estão em posição privilegiada.
O desconhecimento sobre a dinâmica do poço e a possibilidade de aleatoriamente estar mais acima ou abaixo apelam aos instintos mais primitivos das pessoas. Ou seja: se houver comida elas irão devorar o que puderem. Se não houver, bom, você tem um companheiro de cela com dezenas de quilos de carne disponível. Canibalismo é um tema recorrente no filme e é a forma mais visceral do roteiro passar a sua mensagem sobre “antes comer do que ser comido”.
A nossa percepção sobre o poço muda um pouco e a crítica se torna ainda mais contundente quando Goreng divide andar com Imoguiri (Antonia San Juan), que trabalhava como recrutadora do poço e também se submeteu voluntariamente a ele. A personagem serve para mostrar como o conhecimento muda a mente das pessoas: ela sabe que o banquete tem comida suficiente para todos os andares e que, se cada um comer apenas o necessário, haverá comida para todos. A mensagem fica assim escancarada.
No entanto, este conhecimento não serve de nada, nem quando compartilhado. Todos os dias ela tenta montar os pratos das pessoas de baixo, explicando a elas que devem se ater àquela porção e repetir o ato para os andares seguintes. No entanto, o esforço de Imoguiri é inútil, já que as pessoas debaixo não querem saber do racionamento, elas querem aproveitar a possibilidade de comer o quanto podem enquanto podem. A situação se assemelha a celebridades e pessoas ricas pedindo para que cidadãos comuns façam sacrifícios pelo bem maior, enquanto eles desfrutam de seu conforto. A mensagem de Imoguiri simplesmente não cola.
O plano de Imoguiri só funciona em partes porque Goreng faz ameaças às pessoas do andar debaixo para que sigam as orientações. Ou seja, é mais fácil oprimir e ameaçar do que tentar convencê-las de algum tipo de consciência de classe. E vale lembrar: só funciona quando a ameaça vem de cima, já que, como disse Goreng: “Não posso cagar para cima”. Resumindo, manda quem pode, obedece quem tem juízo.
Nesta dinâmica, a cozinha do andar zero funcionaria como a economia e as grandes corporações enquanto os andares pra baixo são a pirâmide social, em que os que estão em cima desfrutam de seus privilégios, recebendo mais do que precisam e deixando as pessoas das camadas inferiores sem recursos, em uma luta desumana por sobrevivência. O fato de uma pessoa passar um mês em um andar inferior e o outro num andar mais alto não muda em nada a consciência sobre a dinâmica do poço: quando têm a oportunidade, as pessoas comem o quanto podem, mesmo sabendo que isso irá causar fome e possivelmente matar outras. Qualquer semelhança com apocalipsers enchendo seus carrinhos no supermercado não pode ser mera coincidência (além de um timing perfeito).
Sempre que pensamos em recursos utilizados de forma indiscriminada, que se tornam insuficientes para todos, também estamos falando de meio ambiente. Não precisa ser tudo sobre economia e crítica social, até porque, no futuro, todo dinheiro no mundo não poderá comprar os recursos naturais que estiverem extintos. Quando Goreng e Baharat (Emilio Buale) estão descendo na plataforma, eles passam por um nível com um homem que levou dinheiro ao poço, mas aquilo não lhe serve para nada. Ou seja, quando não há recursos, o dinheiro se torna inútil.
Desta forma podemos pensar nos andares do poço como uma linha do tempo. O andar zero seria a natureza, onde são disponibilizados os recursos. Os andares de cima são o passado/presente e cada andar de baixo representa uma escala do futuro, sendo que os mais inferiores são o futuro ainda mais distante.
Pensando desta forma, os recursos naturais utilizados hoje serão insuficientes para as gerações futuras. Apesar de não podermos avançar ao futuro e voltar ao passado (como os detentos mudavam de andar), nós temos uma boa noção de que o uso indiscriminado de recursos e a deterioração da natureza resultarão em um cenário desolador para aqueles que vêm depois de nós. Mesmo sabendo disso, o que as pessoas nos andares de cima fazem? Comem como se não houvesse amanhã.
Uma representação que corrobora bastante com esta visão é a chegada de Goreng ao andar 333, onde ele encontra uma criança, que seria a filha perdida de Miharu (Zihara Llana). Como ela conseguiu se esconder e sobreviver com tanta miséria é um mistério, mas o fato de ela permanecer viva e servir como uma mensagem ao andar zero é um recado clara de esperança. É quase como se o filme simulasse uma viagem no tempo de alguém do futuro. O que esta pessoa diria à sociedade de hoje? Surtiria algum efeito? Recursos seriam economizados?
A metáfora religiosa é possivelmente a minha preferida. Ela se torna ainda mais forte no final, quando Goreng e Baharat tentam preservar a panacota, como uma forma de mensagem ao andar zero. Nesta lógica, o andar zero seria Deus, a panacota seria a aliança de Deus com os homens (o Corpo de Cristo, para os católicos) e Goreng e Baharat seriam os profetas, os portadores da mensagem.
No entanto, quando encontram a filha de Miharu, eles presenciam um milagre. Afinal, como você explicaria uma criança ter sobrevivido nestas condições? Seres milagrosos para o cristianismo são os santos e, principalmente, alguns profetas, como Abraão, Moisés e o próprio Jesus. A partir deste momento, eles se dão conta de que a criança é a própria mensagem e aquilo que pode mudar os rumos da humanidade.
Esta é a explicação religiosa mais simples, mas eu prefiro mergulhar um pouco mais e explorar os conceitos de A Divina Comédia, de Dante Alighieri. Os poemas do autor italiano contam a jornada dele próprio ao Inferno, Purgatório e Paraíso, em busca da própria redenção. Boa parte do nosso conceito destes três planos e dos pecados capitais vem desta obra, e não necessariamente da religião (apesar de haver vagas menções).
Começando pelo Inferno, Dante conhece todos os nove círculos do lugar, destinados a punições variadas, de acordo com os pecados cometidos. Nos níveis mais altos, teoricamente menos graves, temos as crianças sem batismo no limbo e descemos para os pecados de verdade, como luxúria, gula, avareza e por aí vai. Os círculos mais profundos, os mais graves, são dedicados aos traidores.
A ideia de que o poço seria o inferno vem do próprio filme: ao chegar no patamar mais baixo de todos, Goreng descobre que se tratam de 333 andares. Ora, se cada andar comporta duas pessoas, chegamos ao número de 666 detentos, não coincidentemente o número da besta. Seguindo por esta lógica e pelos círculos do Inferno de Dante, podemos interpretar que as pessoas não estão simplesmente presas, elas poderiam estar mortas, cumprindo seus castigos eternos.
Alguns destes pecados podem ser vistos no próprio filme: por exemplo, quando Goreng está com Baharat em um dos andares mais altos, eles ouvem o casal acima deles transando. Ou seja, apenas quem está nos círculos mais altos pode se entregar ao pecado da luxúria, enquanto outros, não muito abaixo, entregam-se à gula. Conforme os andares descem, os pecados se tornam mais perversos, indo pelo caminho da ira e da mentira.
Mas se as pessoas estariam mortas, como Goreng e Imoguiri teriam parado lá voluntariamente? Suicídio, óbvio. Crimes de violência contra si próprio também são punidos com a danação eterna. No esquema de Inferno de Dante, eles ocupam o sétimo círculo, ao lado de tiranos, assaltantes, gastadores, blasfêmios, sodomitas e usurários.
A menina encontrada no final se manteve nos níveis mais inferiores, apesar de ela não pertencer àquele local. Se entendermos que ela seria uma criança não batizada, o ato final de tentar mandá-la para cima poderia ser apenas uma destinação ao limbo, o local ao qual ela realmente pertenceria neste esquema. Bem menos otimista que outras interpretações, mas esse não é um filme de final feliz.
O filme O Poço é, sem dúvida, uma das novas produções mais interessantes presentes no catálogo da Netflix. Com uma duração sucinta, ele tem um roteiro fácil de acompanhar, mas que ao mesmo tempo revela possuir várias camadas, que mantêm o espectador preso na história. Talvez o filme se explique um pouco demais em alguns aspectos e se perca um pouco no terceiro ato, mas isso não chega a prejudicar a experiência.
Os recursos de gore e o enquadramento claustrofóbico da câmera ajudam a criar uma sensação incômoda para o público, que consegue se conectar com a agonia vivida pelos personagens. Neste aspecto, a direção de arte também dá sua contribuição, mostrando os contrastes de um luxuoso banquete e a desolação e desumanidade presentse nos diferentes andares do Poço.
Com um roteiro que vai ressoar na sua cabeça por alguns dias e muitas possibilidades de interpretação, O Poço acabou se tornando uma obra necessária para os dias de hoje. Não se atenha às explicações do próprio filme e busque outros significados na sua mensagem e nos seus detalhes: a panacota, Dom Quixote, os caracóis… Tem muito mais coisa acontecendo ali. Óbvio.