Faz tempo que eu queria escrever algo sobre a cultura dos filmes de princesas da Disney e decidi finalmente tirar isso da minha cabeça. É muito comum ouvir e ler todo o tipo de crítica aos filmes de princesas, ao padrão Disney e como isso desvirtuou os conceitos de feminismo e de relacionamento romântico perfeito para gerações de mulheres. No segundo aspecto eu até concordo que os contos de fada acabam contribuindo com essa ideia de “felizes para sempre” e de que isso necessariamente envolva estar com o seu príncipe, coisa que toda novela das oito acabou perpetuando até hoje.
Mas em relação ao conceito de feminismo, acho injusto apontar o dedo apenas para as princesas da Disney. O estúdio nada mais fez do que refletir o contexto histórico em que cada uma das produções foi feita. Afinal, a gente não pode esperar que um filme produzido na década de 1930, como é o caso da Branca de Neve, satisfaça a ideia que hoje temos do verdadeiro lugar da mulher (que é onde ela quiser, caso você ainda esteja em dúvida), não é mesmo?
Se em pleno século XXI a maioria das produções cinematográficas conta com protagonistas do sexo masculino, imagina como isso não era há 80 anos. O fato de que a Disney apostou em um segmento de protagonismo para as mulheres já era um passo importante para o cinema do século passado. E este nicho apenas se mantém porque conseguiu se reinventar. Se você acha que realmente não houve evolução neste período, vamos ver se eu consigo te fazer mudar de ideia:
Branca de Neve e os Sete Anões (1937)
A primeira princesa da Disney era o que se esperava de uma mulher na segunda metade da década de 1930: bonita, graciosa, gentil, esforçada e à espera de um resgate. Vítima da inveja de sua madrasta, é a beleza dela que a salva da adaga do caçador e é a sua dedicação às tarefas domésticas que a mantém na casa dos anões (eu bem que queria aquela bicharada toda me ajudando a fazer faxina, pra ser sincera). A ideia de que o amor da vida dela se manifestaria apenas em uma canção no início do filme e com um beijo no final (alô necrofilia) já está bem ultrapassada, mas era assim que as coisas funcionavam no entretenimento da época. Vale chamar a atenção pro fato de que o príncipe é um mero coadjuvante aqui.
Cinderela (1950)
Pouco mais de 15 anos depois a coisa não tinha mudado muito. Cinderela segue a linha bonita/faxineira que fala com bichinhos (LSD much?) e sofre a inveja da madrasta e das irmãs feiosas. Nela a gente já vê um pequeno ato de rebeldia, já que ela vai pro baile mesmo sem autorização. Assim como no caso da Branca de Neve, é a beleza dela que atrai o príncipe e eles definiram em uma dança que aquilo era amor (tem gente que julga mas se apaixona em balada). Aliás, era tão verdadeiro que o príncipe nem lembrava da cara dela, né? Vai ver é por isso que o personagem dele nem ganhou um nome na história (é sério!).
A Bela Adormecida (1959)
Com o pé na década de 1960 as coisas já não eram mais as mesmas no mundo e a história da princesinha em apuros salva por um gesto de necrofilia não atingiu mais as pessoas como na década de 1930. Se a gente parar pra prestar atenção, a Aurora quase não aparece no próprio filme, que tem a cena roubada pelas fadinhas. Novamente, a Disney apostou na fórmula do amor à primeira vista por meio de uma música, mas pelo menos o príncipe aparece um pouco mais e a gente pode avaliar se ele vale a pena, se é de boa família e tals. Mas isso não foi o suficiente e o fracasso de A Bela Adormecida deixou a Disney em um limbo de 30 anos até que o próximo filme de princesa passasse a ser produzido.
A Pequena Sereia (1989)
Muita coisa já tinha mudado na sociedade e na indústria cinematográfica nesses 30 anos e a aventura protagonizada por Ariel conseguiu ressuscitar as tramas de princesas para a Disney. Com a variedade de gêneros, os desenhos do estúdio apostaram no público infantil, que estava bem mais propenso a adotar as protagonistas sonhadoras e os coadjuvantes cômicos. Sim, os filmes anteriores eram dedicados ao público adulto. Ariel é a primeira princesa rebelde da Disney. Ela enfrenta o pai, assina contrato com a bruxa, mas a mensagem mais perigosa do filme ainda é aquela de ela querer mudar quem ela é apenas pra conquistar o príncipe bonitão. Quando eu era pequena adorava e ainda gosto por puro saudosismo, mas toda aquela história de ela abandonar tudo, inclusive a voz, só por causa dele me incomoda bastante.
A Bela e a Fera (1991)
Se a rebeldia de Ariel se voltava contra as normas do pai, a de Bela é contra toda a sociedade do vilarejo onde ela morava. Apesar da beleza física, Bela ensinou as meninas a valorizarem o intelecto e a imaginação. Ela se recusava a virar a esposinha do bonitão da vila por motivos de incompatibilidade intelectual. Depois que ela vai passar a temporada no castelo do príncipe Adam (Fera), a gente super pode levantar as suspeitas de síndrome de Estocolmo e da grana que ele tinha (alô Christian Grey), mas a verdade é que, pelo menos, o amor dos dois surgiu da convivência e não só de um passeio no parque.
Aladdin (1992)
Ok, a Jasmine não é a protagonista dessa história, mas nem por isso ela ficaria de fora. A primeira princesa da Disney fora da Europa questiona a obrigação do casamento arranjado, coisa que acontece ainda hoje em algumas culturas. Ela também chama a atenção para a necessidade de independência, de ver o mundo além da proteção do castelo. Jasmine ainda quebra o paradigma da Disney de que o príncipe nunca pertencia a uma classe social inferior. Acreditem, essa história da mulher ter mais dinheiro que o homem ainda é problema.
Pocahontas (1995)
Assim como Jasmine, Pocahontas também não quer casar com o cara que o pai arranja pra ela. Mas aqui a história levanta uma questão bem maior do que o simples relacionamento entre a princesa indígena e o conquistador John Smith. O romance dos dois tem um pano de fundo na colonização da América do Norte e da selvageria dos colonizadores com a terra “conquistada”. Spoiler: é o primeiro filme da Disney em que o casal não fica junto no final.
Mulan (1998)
A queridinha da mulherada é sem dúvida a guerreira chinesa da Disney (reparou como eles já melhoraram a diversidade cultural?). Pra poupar o pai da guerra, ela se veste de homem e salva o dia no final das contas. Pode ser um filme “de criança”, mas levanta questões super pertinentes sobre os papéis de gênero, afinal, em um mundo de homens, bastou a coragem de uma mulher pra salvar toda a China.
A princesa e o Sapo (2009)
Depois de toda revolução no mundo da animação e da crise com filmes 2D, a Disney apostou na Obamania pra lançar a sua primeira princesa negra (ainda que não africana, mas seguimos na torcida). O estúdio se apoderou da secular história da princesa que beija o sapo pra ambientá-la em um cenário mais moderno, dinâmico e cheio de jazz. A mistura deu certo e Tiana é a porta-voz do “Yes, we can”: é a primeira princesa Disney a valorizar de verdade o trabalho e o espírito empreendedor. Também tenta dar uma cutucada na importância da beleza física, já que ela e o príncipe se descobrem felizes sob a forma de anfíbios (Shrek e Fiona curtiram isso).
Enrolados (2010)
A primeira princesa 3D da Disney reconta a história de Rapunzel de uma maneira bem mais divertida. A tônica da relação dela com Flynn é muito mais baseada na amizade do que em qualquer outra coisa, o que reflete bastante a origem dos relacionamentos hoje em dia. Não é um dos meus preferidos porque, pra mim, tentou ser muito Shrek. Mas pelo menos mostra personagens mais leves e erráticos.
Valente (2012)
O Girl Power evoluiu bastante na Disney na década de 1990 e nos anos 2000, mas sem dúvida atingiu o seu ápice com a ruivinha descabelada Merida. A princesa da Pixar é, de longe, a mais moleca de todas, provando desde o começo que pode ser tão habilidosa com o arco e flecha do que qualquer guerreiro escocês. Aqui a história foca no gap de gerações entre ela e a mãe, que quer que ela seja uma princesinha de porcelana. O filme dá um passo que nem as novelas da Globo conseguiram dar ainda: nossa protagonista não tem um príncipe e termina a trama solteira e feliz.
Frozen (2013)
Assim como Valente, o foco de Frozen é na família e não tanto nos relacionamentos amorosos. O filme nos lembra que o amor não precisa ser sempre romântico. Aliás, em diversos momentos a princesa Ana é questionada sobre o romantismo e a ideia de amor à primeira vista, conceitos que a própria Disney passou muito tempo semeando. Uma espécie de mea culpa do estúdio que veio acompanhada do alerta sobre a necessidade de realmente conhecer alguém antes de confiar nesta pessoa.
Moana (2016)
Mais uma princesa sem príncipe e fora do eixo europeu! Moana é uma princesa da antiga Polinésia que, ao perceber que a ilha onde mora está ficando sem recursos naturais, ela embarca sozinha em uma aventura para meio que fazer as pazes com os deuses e garantir a sustentabilidade da ilha. A mensagem aqui sai totalmente da busca ou não por um par amoroso e fala de coragem, determinação e também de consciência ambiental. Bem mais pertinente aos dias de hoje do que se arrumar pro boy, não é mesmo?
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