Que atire o primeiro sutiã em chamas quem nunca deixou de ver um filme por considerá-lo “de mulherzinha”. E aqui incluo homens, mulheres e até quem não se identifica com nenhum dos dois. O filme Adoráveis Mulheres é uma lembrança do quão frequente isto ainda é e a produção em si é um convite a esta reflexão. Afinal, desde quando “filme de mulherzinha” é sinônimo de algo ruim?
A julgar pelo resultado da produção dirigida e adaptada por Greta Gerwig – e indicada a seis Oscars – este tipo de pensamento está mais ultrapassado que o prestígio do Kevin Spacey. A cineasta pegou o livro de 1868 e conseguiu deixar suas personagens atualizadas e seu discurso pertinente aos dias de hoje. Com um elenco estrelado e comprometido com a causa, Adoráveis Mulheres é uma produção belamente executada em todas as pontas e que levanta um questionamento sobre o qual Hollywood (e boa parte do público) precisa refletir: por que histórias de mulheres, sobre mulheres e feitas por mulheres parecem valer menos?
Uma prova disso é a temporada de premiações deste e dos últimos anos: apesar de mulheres virem conquistando o seu espaço atrás das câmeras e em muitos casos chegarem perto, as categorias de direção ainda são um território absolutamente masculino – tanto para o Oscar, como para o Globo de Ouro e tantos outros prêmios. Nem o puxão de orelha da Natalie Portman em 2018, quando anunciou os “all-male nominees”, funcionou muito. A última vez que uma mulher recebeu o prêmio já faz 10 anos e foi também a única: Kathryn Bigelow por Guerra ao Terror, um filme até bem masculino. Isso sem contar que em quase 100 anos da premiação apenas cinco mulheres já foram indicadas nesta categoria. Parece até o Miss Universo, em que só o Planeta Terra ganha.
Mas a falta de reconhecimento não é sinônimo de um cinema inferior, apenas uma prova do desinteresse dos membros da Academia (homens, em sua maioria) sobre os filmes que eles “não consideram pra eles”. Ou seja, eles não se enxergam num filme cheio de mulheres e por isso ignoram sua existência e o seu valor. A coisa mais nefasta deste machismo institucionalizado é que as mulheres acabam indo nessa conversa, afinal, a maioria dos filmes que vimos até hoje são feitos por homens e sobre homens – e até a maioria daqueles sobre mulheres são feitos sob a ótica dos homens. Mulheres são mais versáteis e capazes de se interessar por temas além da sua bolha. Homens não.
Calma, eu tive que fazer toda esta contextualização porque é ela que dá base para a pertinência de Adoráveis Mulheres. Na história, Jo March (Saoirse Ronan) é uma aspirante a escritora que já dá todos os sinais do feminismo empoderado que existia muito discretamente no século 19: ela não queria casar, seu objetivo de vida era fazer seu próprio dinheiro vendendo os livros de suas histórias. Hoje as mulheres têm ambições bem parecidas (carreira sobre romance), mas naquela época isso era no mínimo estranho.
Mas Jo não é a única dimensão de feminismo aqui. Com outras três irmãs, Meg (Emma Watson), Amy (Florence Pugh) e Beth (Eliza Scanlen), as “meninas March” têm diferentes sonhos e ambições, passando a mensagem de que não há uma cartilha fechada para o feminismo, ele se manifesta de diferentes formas. Em determinado momento Jo diz para Meg que ela não deveria se casar e se conformar com a vida de esposa, mas sim, perseguir a carreira de atriz. A resposta resume bem a mensagem do filme: “Só porque os meus sonhos são diferentes dos seus não significa que eles valham menos”. Exato, só porque filmes feitos por e para mulheres são diferentes não significa que eles valham menos.
Com este tipo de releitura, Greta Gerwig consegue não apenas atualizar a história, mas deixá-la interessante e pertinente ao que as mulheres pensam hoje. Os conflitos entre irmãs, as inseguranças e as imperfeições das personagens são justamente o que deixa esta versão tão necessária.
Adicione isso à excelente qualidade técnica do filme, principalmente na direção de elenco, atuações, trilha sonora, design de produção e figurino. Esta última é particularmente interessante, já que dá pra perceber bem fácil que cada uma das irmãs possui uma paleta de cores bem definida, separando ainda mais a personalidade de cada uma delas.
Em termos de atuação o elenco é peso pesado. Além dos nomes que já citamos ali, tem Laura Dern, Meryl Streep, Bob Odenkirk, Chris Cooper e Timothée Chalamet (fazendo o que ele sempre faz). Uma das principais revelações aqui é Florence Pugh, mostrando sua versatilidade e carisma logo após ter concluído as gravações de Midsommar. Ela e Saoirse Ronan receberam indicações ao Oscar por Adoráveis Mulheres.
A forma não linear com que Greta conduz o roteiro, ajudada pela sagacidade da edição, deixa a história ainda mais intrigante, traçando paralelos entre passado e presente das personagens. Além de criar certo mistério em algumas relações de causa e consequência, em alguns momentos ela consegue pregar pegadinhas no espectador, que se verá tentando decifrar em que momento da história tal episódio ocorreu.
Há um aspecto do final do filme que eu provavelmente mudaria, pois me parece trair um pouco a sua protagonista Jo, mas entendo que a ideia era justamente quebrar outro paradigma do “feminismo idealizado”. Não chega a estragar o que se viu até ali, até porque o principal objetivo foi atingido e a mensagem foi dada de forma professoral até demais.
Ao não negar a vertente “mulherzinha” do filme e, em vez disso, celebrá-la, Greta Gerwig presta um baita serviço a mulheres do mundo inteiro e entrega uma mensagem com destinatário bem definido: a indústria cinematográfica. A fria recepção na temporada de premiações é apenas mais uma prova de como filmes assim são necessários. Louisa May Alcott estaria orgulhosa por ver que sua obra se mantém atual mesmo dois séculos após a publicação.