O outro lado do vento | A sátira autobiográfica de Orson Welles

    O outro lado do vento

     

    Nenhum filme no catálogo da Netflix irá colocar tanto a sua cinefilia à prova como o recém-lançado O outro lado do vento, lançado quase 50 anos após sua produção. Por se tratar de uma produção do icônico cineasta Orson Welles, o filme já se propõe nascer um clássico, mas a tarefa não é tão simples assim.

    Trata-se de uma ironia metalinguística do começo ao fim. Na história, o aclamado diretor Jake Hannaford (John Huston) participa de uma festa para conseguir financiar o restante da sua produção, justamente intitulada O outro lado do vento. O filme foi abruptamente interrompido quando o protagonista abandonou a produção, dificultando o trabalho de Jake para o seu lançamento.

    O outro lado do vento

    O que pode parecer um caos para os espectadores mais leigos revela-se quase como um desabafo bem-humorado (mas não menos rancoroso) do próprio Welles com a sua relação com Hollywood. O diretor-roteirista-protagonista de Cidadão Kane (considerado apenas um dos melhores filmes de todos os tempos) nunca foi premiado com um Oscar “de verdade”. Apenas com um honorário em 1971.

    Assim como o filme descrito em O outro lado do vento, Orson Welles teve diversas produções deixadas pelo caminho por divergências criativas e problemas com financiamento de estúdios. O próprio filme que foi resgatado, editado postumamente e lançado pela Netflix corria o risco de ter este destino. E é isso o que faz o filme tão genial: em ambos os casos temos filmes interrompidos e que nunca serão lançados ao público da forma que foram vislumbrados.

     


     

    Este elemento da obra inacabada é provavelmente uma das críticas de Welles à indústria cinematográfica. No filme, o diretor Jake Hannaford, mesmo consagrado, tem problemas ao tentar adaptar sua linguagem ao movimento New Wave e criar um filme mais conceitual, resgatando até elementos do cinema mudo. Para Welles, a falta de conclusão do projeto é um recado de que o filme pronto nunca estará à altura do que o diretor havia imaginado para a sua obra de arte. As “pedras no caminho” entre o que o criador quer e o que a indústria entrega está bem clara: o tratamento do cinema como indústria, o que faz com que cada filme seja visto apenas como investimento e não como arte. Sim, há 50 anos Orson Welles já nos alertava para algo que hoje vimos acontecer todos os dias nas salas de cinema (e na própria Netflix, por que não?).

    O outro lado do vento

    O próprio filme parece ser um recado em relação a isso. Com uma edição nervosa que não se desculpa por intercalar três narrativas em pequenos takes, o filme não será facilmente digerido pela “geração Netflix”. Mesmo com um ritmo acelerado nos diálogos (não olhe o celular ou você corre o risco de perder o fio da meada), as pouco mais de 2h de produção às vezes parecem se arrastar pelas 100h de material gravado por Welles. Mesmo com a dinâmica interessante que intercala documentário e filme de ficção, em diferentes formatos e fotografias, não é todo mundo que conseguirá se manter focado até o fim.

    Mais de 30 anos após o seu falecimento, Orson Welles mostra uma crítica disfarçada de comédia à indústria cinematográfica que se mantém mais atual do que nunca. Para os cinéfilos amantes dos clássicos, que conhecem um mínimo de história do cinema, O outro lado do vento é um experimento necessário que transveste de piada o debate entre o cinema-arte e o cinema comercial. Lançar o filme em uma plataforma tão vorazmente comercial como a Netflix pode ter sido um erro ou uma ironia ainda maior.

     

    Nota de O outro lado do vento:

    Imagens: Netflix

     
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