Sob a pele do lobo | O vazio da paisagem que se repete no roteiro

    Sob a pele do lobo

     

    A Netflix está trazendo algumas produções espanholas bem interessantes, fazendo o público conhecer o cinema do país além do Almodóvar. Um dos mais recentes exemplos é o filme Sob a pele do lobo, estrelado por Mario Casas que nós já conhecemos do ótimo Um contratempo e do irregular O bar.

    A sinopse do filme não entrega muita coisa sobre Sob a pele do lobo. Diz apenas que no final do século 19 um ermitão compra uma mulher pra ser sua esposa. Apesar de achar essa descrição medonha, coloquei no contexto histórico pra aceitar a ideia e me deixei levar pelas belíssimas paisagens do trailer, esperando que o filme trouxesse algo mais do que a brevidade da sinopse.

    Sob a pele do lobo

    A verdade é que não tem muito além do que está ali. A primeira meia hora do filme se resume às belas paisagens do norte da Espanha, onde Martinón (Mario Casas) vive. Nós nos acostumamos com aquele ambiente melancólico e ameaçador onde um vilarejo tem em Martinón seu último habitante. O estilo de vida do protagonista em muito lembra o de qualquer animal selvagem da região, fora o fato que ele tem a vantagem das armas de fogo e de vender suas caças uma vez ao ano no vilarejo mais próximo (esse sim, habitado).

    Se você aguentou acordado até aqui vai ser premiado com o primeiro diálogo do filme (não são muitos). Em uma negociação de suas caças, alguém dá uma ideia pra ele não viver tão sozinho: ter um cachorro. Ou melhor, faça um upgrade e tenha uma mulher, assim quem sabe ele pode até ter uma família! Sim, nesse tom. Mas claro, a gente tem que colocar num contexto histórico e lembrar que em algumas culturas mulheres ainda são tratadas como mercadoria.
     

     

    – A partir daqui o texto contém spoilers. Se você pretende ver o filme, leia apenas após o aviso do fim dos spoilers –

     

    Martinón compra sua esposa, leva-a pro meio do nada e a gente acha que o roteiro finalmente vai engrenar. Não muito. Depois de algumas cenas de hã… sexo, a esposa de Martinón, Pascuala (Ruth Díaz) fica grávida, fica doente, morre e Martinón descobre que o bebê não era dele.

    Aí, assim como a gente troca eletrodomésticos defeituosos, Martinón foi reclamar com o pai de Pascuala que ela já tinha vindo grávida e doente. Pra “compensar”, o cara entrega a Martinón sua filha mais nova, Adela (Irene Escolar). “Agora sim” a gente pensa que vai ter alguma história. Só que nessa altura já se passou mais da metade do filme.

    O segundo casamento sai bem diferente do primeiro. O que a gente conseguia chamar de cena de sexo no primeiro, aqui vira estupro mesmo. E não apenas uma vez, provavelmente pra tentar provar o ponto de que ele era quase um animal e de que naquela época as coisas eram assim mesmo. Há umas três cenas de estupro que não servem à história, já que está bem claro o quanto Adela odeia a situação em que ela se encontra. E a gente já teve bastante contexto pra entender o caráter animalesco de Martinón.

    No dia do casamento, o pai de Adela entrega a ela um misterioso embrulho “pra caso ela não aguente mais”. A primeira impressão é de que ali tem algo que a ajude a acabar com a própria vida. Mas quando Adela pega o tal embrulho o objetivo dela não abrir mão da vida: ela utiliza as ervas do tal embrulho para envenenar Martinón. Finalmente algo interessante.

    Só que, o que parecia uma situação de A Bela e a Fera sem síndrome de Estocolmo, acaba com um desfecho frustrante pra quem aturou mais de 1h de “vários nada” até aqui. Com Martinón já com a saúde debilitada, Adela tenta fugir durante uma das saídas dele pra caçar. Só que o plano dela não dá muito certo quando ela cai numa das armadilhas que ele próprio deixou para os animais. De alguma forma, Martinón a encontra, leva-a de volta pra casa e cuida dela. Eu até poderia dizer que é o roteiro querendo que a gente esqueça de todos os estupros e comece a simpatizar com ele. Mas é importante frisar que aqui Adela está possivelmente grávida e que o interesse dele deve estar muito mais no bebê do que na esposa.

    Assim como a Fera, Martinón também “deixa” Adela ir embora se ela quiser. Mas claro que ele só faz isso depois de ver sangue no meio das pernas dela, o que pode ser um aborto ou somente a confirmação de que ela nunca esteve grávida. Ela vai, o veneno continua fazendo efeito e ele fica lá sozinho e morrendo. Sobe créditos, você ficou 1h50 investindo nisso.

     

    – Fim dos spoilers. Pode ler o veredito –

     

    Primeiro vamos falar da parte boa? O trabalho de direção, principalmente na parte de fotografia, é deslumbrante. Há várias cenas que renderiam um quadro, tanto quando são retratadas as belas paisagens do local, como os enquadramentos com os atores em cena. O diretor de fotografia Aitor Mantxola consegue retratar muito bem a solidão e a ameaça daquele ambiente.

    O diretor Samu Fuentes também aposta em uma fórmula de introspecção dos personagens, o que é natural de se imaginar para aquela época. Um cara que vive sozinho e mulheres que são criadas para servir realmente não vão verbalizar muito os seus sentimentos. Isso é muito mais difícil para o elenco do que um roteiro cheio de diálogos. Felizmente Irene Escolar consegue fazer este trabalho muito bem: nós entendemos o sofrimento e a solidão da personagem só de olhar para ela. Já Mario Casas não apresenta grande evolução no personagem (embora o filme tente dar essa roupagem de um selvagem que se torna mais humano).

    Se na parte técnica Fuentes faz um trabalho decente, o mesmo não pode ser dito do roteiro, que também foi escrito por ele. O vazio das paisagens ermas não se compara ao vazio do roteiro simplista que consome menos da metade da produção. Não há um arco, não há aprendizado (nem pra gente e nem pros personagens) e não há uma ambientação ou construção de personagem que realmente nos faça simpatizar com eles. A gente espera que um pouco da história de Martinón ou daquele vilarejo sejam explorados, mas isso não ocorre. No final das contas temos uma trama de 30 minutos frustrada por não ter um desfecho e sufocada por outros 80 minutos de paisagens e cenas de Casas comendo carne de um jeito animalesco.

    Mesmo querendo se aproximar de um tom documental e do cinema-arte de O regresso, Sob a pele do lobo esquece que o que sustenta bons filmes ainda são boas histórias. E nisso o filme fica devendo.

    Nota:

    Trailer de Sob a pele do lobo:

    Imagens: El País / HobbyConsoles

     


     

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