Qual a explicação do filme Nós? Trazemos algumas respostas

    filme Nós

    Se você assistiu ao filme Nós, do roteirista e diretor Jordan Peele, é possível que tenha desvendado alguns mistérios, mas que ainda tenha saído com muitas dúvidas de toda a simbologia que tem ali. Analisamos com calma o filme e fizemos algumas pesquisas para trazer algumas explicações para o longa:

    Quem são os acorrentados e qual a crítica social que o filme promove?

    Os apavorantes clones das pessoas que aparecem pra matá-las têm sua origem, segundo Red (Lupita Nyong’o), em um experimento do governo. Eles ficam enclausurados debaixo da superfície e se limitam a repetir os movimentos das pessoas “originais”, que vivem suas vidas lá em cima. A crítica sobre os experimentos do governo, a tentativa de controlar a população e a descontinuidade do projeto, sem se importar com o que aconteceria com aqueles seres é a parte mais óbvia.

    filme Nós

    Porém, a crítica de Jordan Peele vai mais longe ao imprimir nos acorrentados as figuras de pessoas marginalizadas nos Estados Unidos. Esta ideia pode ser absorvida no primeiro encontro de Red com a família de Adelaide (também Nyong’o), quando ela conta a história da menina que teve tudo, enquanto outra teve um caminho bem diferente e infeliz. Os acorrentados são aquelas pessoas invisíveis à sociedade, completamente ignoradas, mas que estão lá, apenas sobrevivendo.

    [spoiler a seguir] 

    O fato de Adelaide ter sido na verdade trocada por sua sombra ainda na infância, permitindo que a segunda se expressasse através da dança, criando seus próprios passos em vez de uma imitação, tem uma mensagem muito poderosa de Peele. Significa que até as pessoas mais marginalizadas, se tiverem uma oportunidade, podem se destacar e ter sucesso. O problema está justamente em conseguir sair do submundo e “ter seu lugar ao sol”, o que no filme ganha um significado literal.

    [fim deste spoiler]

    Tem outro significado bem bacana que é o de que pessoas que se parecem exatamente com você estão causando o terror por aí. Isso é bem pertinente uma vez que nos Estados Unidos ainda há muito preconceito, principalmente com imigrantes, em que as pessoas acreditam que apenas quem tem tal aparência é perigoso, mas no filme o perigo tem um rosto muito mais familiar.

    filme Nós

    O que diz Jeremias 11:11?

    Esta é uma das primeiras pesquisas que a gente faz ao sair do cinema, porque com certeza há algum significado na placa do homem na praia, além da óbvia simetria e duplicidade dos números 11:11. Para você não precisar abrir no Google, a passagem bíblica de Jeremias 11:11 diz: “Eu vou trazer a eles um desastre do qual eles não podem escapar. Apesar de eles chorarem para mim, eu não irei ouvi-los”. O que a gente pode interpretar de duas formas: 1) os próprios acontecimentos do filme, sendo o desastre o ataque dos clones e qualquer tentativa de ajuda se mostrar inútil (principalmente por parte da polícia); 2) o desastre seria sobre os acorrentados, já que a passagem fala em “não ouvir” e as pessoas do submundo eram incapazes de falar – assim como os marginalizados da sociedade, que não têm voz.

    Porém, podemos ir um pouco mais fundo na interpretação desta passagem se soubermos quem era Jeremias. Este profeta alertava principalmente quanto à adoração de falsos deuses, cuja consequência seria o tal desastre da profecia. No início do filme podemos ver várias insinuações de cultos a falsos deuses: o pai Gabe (Winston Duke) que tinha uma obsessão de “diversão em família” (só que sempre nos termos dele) e todo o lance com o barco, Zora (Shahadi Wright Joseph) que não largava o celular nunca, Jason (Evan Alex) que era obcecado pela máscara (embora isso levante uma outra discussão que vou abordar mais pra frente) e os próprios vizinhos da praia, os Tyler, que adoravam as coisas caras e luxuosas da sua casa.

    Se a gente parar pra pensar assim, até a camiseta de Thriller que Adelaide ganha enquanto criança pode ser uma alegoria disso, já que foi depois deste clipe que Michael Jackson atingiu um status de quase deus nos anos 1980.

    filme Nós

    Qual o significado de “Hands Across America”?

    O movimento que passa na TV em 1986 ocorreu de verdade. A ideia era formar uma corrente humana que atravessasse os Estados Unidos para arrecadar dinheiro para a fome na África. Para participar da corrente, a pessoa doaria algo entre US$ 10 e US$ 15 e o objetivo era que isso levasse à quantia de US$ 100 milhões. No entanto, embora muitas pessoas tivessem participado, o resultado da corrente foi meio furado, já que as condições geográficas e climáticas impediram que a corrente se formasse em lugares desertos, rochosos e com neve. No final das contas, a arrecadação ficou quase 10x abaixo do esperado.

    A crítica aqui é a seguinte: enquanto os “cidadãos de bem” ficam se perdendo em uma causa aparentemente nobre, mas com mais simbologia do que utilidade prática, os próprios Estados Unidos têm pessoas passando fome, marginalizadas e ignoradas por todos.

    filme Nós

    O que significam os coelhos e as tesouras no filme Nós?

    Esta é provavelmente uma das explicações mais frustrantes. Enquanto os coelhos possam carregar a simbologia de renascimento e as próprias orelhas deles lembrarem tesouras (já vamos falar delas), a explicação do diretor é de que ele tem medo de coelhos e acha que, se tivessem a oportunidade, eles fariam com os humanos a mesma coisa que os acorrentados fazem no filme.

    As tesouras provavelmente são a arma de escolha porque elas carregam dualidade: são duas peças iguais, posicionadas de formas opostas e que funcionam como arma quando tais peças estão juntas. Além disso, pode reparar que na maioria das vezes as sombras atacam com tesouras as gargantas de suas vítimas, atingindo justamente as cordas vocais. Isso é bem simbólico, uma vez que o fato dos acorrentados não falarem é a única coisa que os difere das pessoas da superfície.

    filme Nós

    Que outras referências são importantes?

    Jordan Peele brinca bastante com o figurino no filme. Enquanto as sombras se vestem com macacões que lembram roupas de presidiários (afinal, viver marginalizado não deixa de ser uma prisão), as pessoas da superfície usam camisetas cheias de simbologia para a trama. Quando era pequena Adelaide ganhou a camiseta de Thriller, um clipe com zumbis que atacam durante a noite – o ataque dos clones quase zumbis também começa de noite. Quando a família está na praia Jason está usando uma camiseta do filme Tubarão, um filme de terror que também começa com um tranquilo dia na praia mas que depois todos nós sabemos como continua.

    Outra coisa bem bacana que nem todo mundo percebe é a analogia do título original: Us = U.S. = United States. O que casa muito bem com a resposta de Red quando Adelaide pergunta o que eles são e ela responde “Americanos”. Tudo isso contribui para o significado de crítica social à sociedade dos Estados Unidos. Em português o único trocadilho com “Nós” que a gente poderia encontrar é dos nós que o filme dá na cabeça (ba dum psss).

    filme Nós

    Qual o lance de Jason com a máscara? [contém spoilers e teorias da conspiração]

    Esta aqui é uma teoria que está rolando no Reddit e que, embora tenha alguns furos, faz muito sentido. Jason é o único que tem uma diferença física de sua sombra, Pluto: enquanto o menino do submundo tem metade do rosto queimado, o da superfície continua com o rosto intocado. Ao fim do filme ele é o único que sabe o segredo de Adelaide, de que na verdade ela era uma sombra que foi trocada quando criança. Mas será que ela era a única? A teoria é de que Jason também tenha passado por esta troca após ter aprendido o truque com o fogo e ter se queimado. A queimadura explica por que o Jason original não conseguiria falar, mas o furo é de que, se Pluto está no lugar de Jason, ele também teria passado por um período sem falar – a não ser que Red o tivesse ensinado antes de ele ir à superfície.

    Há alguns acontecimentos que cercam Jason que colaboram com a teoria: eles mencionam um episódio em que ele tinha se trancado no armário e passado um tempo se conseguir sair – quando provavelmente aconteceu a queimadura e a troca. Além disso, quando ele está na praia comentam que ele é diferente das outras crianças e prefere fazer túneis em vez de construir castelos.

    Além disso, tem todo o lance da máscara, que esconde quem ele realmente era. Seguindo por esta lógica, Jason, após ter ido para o submundo, usaria sua máscara para esconder a cicatriz. Como Pluto estava no lugar de Jason, mas ainda tinha comportamentos de sombra, ele também passou a utilizar a máscara quase que o tempo inteiro. A ironia é que a máscara é do Chewbacca, que se comunica com grunhidos muito parecidos com os dos acorrentados.

    filme Nós

    Mas afinal, Nós é um bom filme?

    Jordan Peele faz um excelente trabalho com simbologias, analogias e em subverter o gênero dos filmes de terror. Ele mistura suspense, com home invasion, com slasher e por aí vai. Além disso o filme possui uma riqueza de referências que deixam o espectador procurando significado até onde não tem.

    O trabalho de direção é impecável, com movimentos de câmera que são bem comuns ao gênero de terror, mas que ainda conseguem surpreender o público. Da mesma forma, a utilização da trilha sonora pontua muito bem as cenas de perseguição e dão aquela agoniazinha parecida com o trabalho dele em Corra! (que você pode conferir a crítica completa aqui).

    Lupita Nyong’o está de arrepiar tanto como Adelaide como no papel de Red. Ela transmite todo um passado de traumas (dos dois lados), dor e segredos sem precisar verbalizar isso o tempo todo – os olhos fazem este trabalho. Quando ela projeta a voz de Red é de se arrepiar mesmo.

    Porém, há alguns pontos no filme que me decepcionaram um pouco. Diferentemente de Corra!, que era mais uma mistura de gêneros, Nós é claramente um filme de terror. E, embora ainda tenha um pouco mais de cérebro, Jordan Peele cai em algumas armadilhas do gênero. As duas que considero mais graves são: fazer os personagens agirem de forma claramente idiota e parar a história para explicar tudo.

    filme Nós

    O tal do plot twist de que Adelaide era Red e vice-versa não é bem um plot twist, fica meio óbvio desde o começo. Ele até tentou nos enganar em algum momento, mas era óbvio demais. Por isso que eu quero acreditar no lance da troca de Jason, seria mais inteligente e sutil.

    Eu não sei se é um problema de chegar ao cinema mainstream, mas a hora em que ele para a história para que Red explique tudo sobre o experimento do governo ficou muito anticlimático. Parece que duvida da capacidade do público de descobrir isso de outra forma. Ou talvez Peele tenha se perdido tanto nos ataques que uma explicação verbal evitaria que o filme tivesse mais meia hora de duração. Beleza que depois a gente ganha uma baita sequência de luta/dança, mas a pausa pra explicação parece subestimar a inteligência do público.

    Embora não tenha a originalidade de Corra!, Jordan Peele ganha mais pontos como um dos diretores de terror mais interessantes da atualidade. Com uma trama que sempre é muito mais do que aparece na superfície, Nós é um daqueles filmes que precisa ser assistido várias vezes para ser completamente apreciado e compreendido. Afinal, a mensagem também está escondida em algum túnel subterrâneo.

    Nota:

    Imagens: Claudette Barius – © Universal Pictures


    gdpr-image
    Utilizamos cookies em nosso site para ver como você interage e melhorar a sua experiência de navegação. Ao clicar em “Ok” ou ao continuar navegando em nosso site você concorda com a utilização dos cookies.