Um dos filmes mais aguardados do ano, O Irlandês, distribuído pela Netflix e exibido em apenas algumas salas de cinema, marca o retorno do diretor Martin Scorsese ao gênero que o consagrou: os filmes de máfia. O hype também é ajudado pela reunião com os astros Robert De Niro e Joe Pesci, além da primeira colaboração de Scorsese com Al Pacino. Mas afinal, o filme corresponde a tanta expectativa?
Em O Irlandês De Niro é Frank Sheeran, um motorista de caminhão que faz pequenas entregas e que, por meio do contato com Russell Buffalino (Joe Pesci) consegue alguns trabalhos paralelos que envolvam acertos de contas. Sua discrição e aparente falta de remorso são bem recebidas no meio, o que leva Sheeran a cair nas graças de Jimmy Hoffa (Al Pacino), um influente e famoso presidente do sindicado dos motoristas de caminhão – sim, máfia nos sindicados it’s a thing!
O que se vê a partir daí é uma trajetória um tanto parecida com outros títulos consagrados do gênero, como O Poderoso Chefão e Os Bons Companheiros, este último do próprio Scorsese. Tudo ocorre do ponto de vista de Sheeran, que se vê algumas vezes em conflito sobre onde sua lealdade realmente reside.
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Para os fãs de filmes de máfia há vários acenos aos clássicos que já citamos e algumas passagens são bem familiares, como o contraste entre uma cena de casamento e uma execução – não tão brilhante quanto a cena do batismo em O Poderoso Chefão, mas que ainda deixa seu recado – e até a existência de um lago que o lembrará do destino de Fredo Corleone. A “perseguição” nos tribunais, outro tema recorrente, também está lá.
Além de toda a nostalgia, o filme se destaca das demais produções de máfia pela maturidade, sobriedade e até uma certa introspecção de Scorsese ao conduzir a narrativa. A história já começa com um Frank Sheeran idoso, abatido, contando sua história em um asilo, possivelmente nos últimos dias de sua vida. A história ainda se intercala por outras duas linhas temporais: a viagem de Sheeran e Buffalino com suas esposas ao casamento da filha de um amigo e a ordem cronológica dos fatos, que remete aos primeiros trabalhos de Frank ainda como motorista. É um quebra-cabeça bem fácil de montar, mas que dá algum dinamismo e senso de consequência à história.
Diferentemente de outras produções de Scorsese, como Os Bons Companheiros e Cassino, a visão da máfia é bem mais comedida e sóbria. Não estamos falando de homens guiados pela ganância e luxos da vida de gângster. Aliás, este glamour fica bem restrito em O Irlandês, presente em momentos muito específicos. Aqui, o filme vê os trabalhos dos mafiosos como uma questão de sobrevivência e proteção à família. Aliás, eles nem ao menos se enxergam como mafiosos.
Outro ponto de destaque nesta visão mais madura do diretor é a ideia do senso de consequência, pouco presente nestes tipos de filme. Nos últimos dias de vida de Frank Sheeran, é possível ver algum ponto de remorso sobre seus feitos do passado, mas não ao ponto de ele buscar qualquer tipo de redenção.
A maturidade de Martin Scorsese também pode ser percebida na própria filmagem do longa. O diretor parece ter reunido o melhor de dois mundos aqui: a temática e as tramoias do submundo com a meticulosidade que ele desenvolveu em seus filmes mais Oscarbait, como O Aviador e A invenção de Hugo Cabret. Até as cenas de violência estão mais polidas do que o banho de sangue presente em Taxi Driver.
Os próprios atores abraçaram este tom introspectivo e aplicaram aos seus personagens. De Niro e Pesci são os que mostram a maior mudança, abandonando completamente os trejeitos que marcaram suas atuações em outros filmes do gênero. Pacino é o que entrega uma performance mais familiar, mas o personagem exige isso dele. O elenco de apoio, composto por Anna Paquin e Jesse Plemons é menos aproveitado do que poderia, mas entregam performances operantes.
Calma lá, champs. Apesar da ambição de Scorsese em fazer um projeto grandioso – que estava sentado há alguns anos porque nenhum estúdio o queria – ele não é livre de falhas. Afinal, quando você exige 3h30 da atenção do seu público, é normal que ele também exija mais do resultado.
Um dos pontos mais controversos de O Irlandês, que o diretor fez questão de bancar – e que tornou a produção tão mais cara – foi o emprego de CGI para rejuvenescer o elenco. A técnica não é inédita, mas mostra que ainda precisa ser aperfeiçoada.
Apesar de ainda ser mais eficiente que muitas maquiagens que já vimos no cinema, o CGI prejudica alguns pontos cruciais para a interpretação. No começo do filme você quase não percebe, mas bastam alguns minutos para notarmos que a expressão dos olhos e os movimentos da boca são os principais prejudicados. Com De Niro o principal problema foi esse, com Joe Pesci a coisa simplesmente não funcionou – ele continuava velho, só que de uma forma esquisita.
Outro problema é que, apesar de ser uma grandiosa produção, que entrega a história aos poucos, focando bastante na construção de personagens e das relações entre eles, o ritmo cai um pouco. Ali entre a marca de 2h e 2h50 parece que a coisa patina para caminhar ao clímax, diminuindo até o seu impacto. O filme entrega tanto que acaba até com o choque de um possível plot twist. A partir daí o epílogo de 40 minutos volta a tornar as coisas mais interessantes do ponto de vista narrativo. Para um filme de 3h30 assistido em streaming, com possibilidade de pausar, deixa a experiência um tanto anticlimática.
Apesar de ter suas falhas e de ser um filme mais lento do que outros exemplos do gênero, O Irlandês é um respiro de qualidade na produção cinematográfica de Hollywood atualmente. Pode não ser tão original como Scorsese defende e pode soar até um pouco autoindulgente, mas tem sua contribuição para o cinema ao subverter um pouco o glamour do filme de gângster e ao entregar uma qualidade técnica acima da média. Não é o melhor filme do ano, mas tem calibre para passar bem pela temporada de premiações.
Nota: