Assassinos em série sempre exerceram um certo fascínio sobre as pessoas: quem são, onde vivem, do que se alimentam, são apenas malvados ou têm doenças mentais? Um nome que pipocou bastante neste ano é o do psicopata Ted Bundy, com o lançamento de um livro, uma minissérie documental e de um filme de ficção.
Se entender o que se passa dentro da mente de um serial killer não é uma tarefa fácil (tá aí Mindhunter pra provar), a de Ted Bundy é particularmente perturbadora. O cara era inteligente e boa-pinta, o que aumenta o nosso problema ao lidar com o fato de ele ser um psicopata que matava brutalmente suas vítimas.
Para explorar esta peculiaridade de Bundy, a nossa equipe de assuntos mórbidos e seres asquerosos fez o serviço completo: leu o livro, viu a minissérie e o filme. A seguir explicamos o que esperar de cada obra e qual delas vale a pena conferir de perto se o assunto te interessa.
Vamos começar pelo livro Ted Bundy – Um estranho ao meu lado, escrito por Anna Rule e publicado no Brasil pela Darkside Books. O tijolão de quase 600 páginas foi escrito por uma amiga de Ted, de quando eles trabalhavam como voluntários na central de prevenção a suicídio, uma espécie de Centro de Valorização da Vida (CVV) norte-americano.
A narrativa funciona do ponto de vista da própria Ann, desde quando conheceu Ted até anos após sua execução (se aconteceu de verdade não é spoiler). Ela capricha bastante nos detalhes de quem ela entendia como Theodore Bundy, quais eram as posturas dele, alguns traumas do passado e como foi o relacionamento de amizade dos dois até depois das acusações pelos assassinatos.
Além de ter esta experiência pessoal, Ann também se dedicou bastante à pesquisa sobre os eventos que ela não presenciou, como os assassinatos das vítimas. Com informações da polícia e de testemunhas ela recria com o máximo de detalhes possíveis como foi a abordagem e o estado em que ele deixou as vítimas (pelo menos as que chegaram a ser encontradas).
O envolvimento pessoal de Ann com a história dá um toque extra à narrativa: a própria autora se mostra em conflito com a imagem que ela tem de Ted, tendo bastante dificuldade em associar o Ted assassino ao Ted colega de trabalho – principalmente um que salvava vidas.
Mesmo com a desconfiança de Ann quanto à culpa de Ted num primeiro momento, em momento algum ela tenta colocar o assassino em um pedestal ou questionar a autoria dos crimes dele. Esta mudança de opinião fica bem visível conforme as páginas avançam e a personalidade de Ted fica mais selvagem e errática. Faz o leitor se questionar como ele se sentiria no lugar dela.
Além de não questionar a culpa de Ted, dá pra perceber que Ann Rule teve certo cuidado em homenagear as vítimas, buscando explicar ao máximo quem eram estas moças, que não era apenas números na pilhagem de corpos de Bundy. Das três obras é provavelmente a única a ter este cuidado.
Como falei, o livro é um tijolão e mais ou menos umas 100 páginas foram acrescentadas postumamente. Todo o material extra dá uma boa ideia da repercussão dos crimes e da condenação de Ted, que se arrastou por anos até ter um desfecho conclusivo. Ann também menciona os inexplicáveis “fã clubes” de Ted Bundy e como várias pessoas acreditam ter alguma relação com o assassino – reforçado por um número de crimes que nunca foram solucionados.
Dividida em quatro episódios, a minissérie Conversando um serial killer: Ted Bundy é um documentário da Netflix baseado em fitas de entrevistas concedidas por Bundy enquanto estava no corredor da morte. Com a informação bem mais compactada, o documentário traz uma abordagem mais objetiva sobre os crimes e a condenação.
O recorte da história aqui já começa nos crimes de Ted e acaba com sua execução. Com um ritmo bem mais corrido, pouco se fala sobre as vítimas e o modus operandi do assassino, com exceção de alguns casos específicos.
O foco do documentário está mais no que o próprio Bundy e a mídia ofereceram. Há bastante tempo dedicado às primeiras prisões e fugas do serial killer, bem como ao julgamento e às infinitas tentativas de Ted em provar sua inocência, anular o julgamento e, finalmente, fugir da cadeira elétrica.
A minissérie de Joe Berlinger utiliza bastante material de arquivo, matérias de TV, filmagens do julgamento e entrevistas e, claro, das próprias fitas. Mesmo com todo este material à mão, o documentário busca não assumir um lado, podendo até dar a impressão de que poderia acreditar na inocência de Ted, o que eu considero um tanto problemático.
Só pelo título que deram para este filme no Brasil eu já tenho um problema. Alivia bastante o “Extremamente perverso, chocantemente maligno e vil”, título original do filme, que foi a expressão utilizada pelo juiz ao condenar Bundy. Mas vamos ao filme em si.
Dirigido por Joe Berlinger, o mesmo cara da minissérie das fitas, o filme se baseia em outro livro, escrito por Elizabeth Kloepfer, que namorou Bundy na época dos assassinatos – sem saber destas atividades paralelas do crush. Ou seja, é a visão dela sobre o Ted.
Protagonizado por Zac Efron no papel de Bundy e Lily Collins interpretando Liz, o filme, até pela sua curta duração, tem um retrato ainda mais resumido do que era Ted Bundy e das implicações de seus crimes. Apesar de ser contado do ponto de vista de uma namorada do psicopata, não há muito material aqui sobre a relação dos dois. Não dá pra dizer que a gente entende qual era a cola que prendia Liz a Ted e por que ela continuou acreditando nele por tantos anos. Talvez até para que ela aliviasse a própria barra.
Assim como no documentário, boa parte da ação fica na prisão, nas fugas e no julgamento. Por um lado isso é muito bom, já que o embate entre Zac Efron e John Malkovich, no papel do juiz, é um dos pontos fortes do filme. Acontece exatamente como eu imaginei no livro de Ann, apesar de Malkovich não ser fisicamente muito parecido com o juiz.
O que eu acho mais problemático no filme é que não dá ideia alguma das atrocidades que Ted praticava em suas vítimas além do que é dito no tribunal. O espectador que assistir somente ao filme não saberá o que tornava Ted tão monstruoso e é capaz até de acreditar na inocência dele.
Há uma tentativa bem visível de aliviar o lado de Liz, mostrando-a inclusive como uma personagem mais forte do que o livro de Ann dá a entender. Há bastante manipulação da história para dar a sensação de que ela dá uma cartada final pra cima de Ted, confessando a ele depois de muitos anos que a denúncia à polícia tinha sido feita por ela. Na verdade ela já tinha falado pra ele muito antes, sempre se culpando por isso e ainda acreditando na inocência do namorado. Ted havia a perdoado supostamente naquela época, o que tira completamente o sentido da última conversa dos dois no filme.
No final das contas, apesar de algumas boas atuações, o filme é raso demais para entender Ted Bundy, para saber a visão de Liz e até mesmo para saber por que os crimes dele causaram tanta comoção nos Estados Unidos.
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Mesmo sendo uma obra bem extensa, se você se interessa mesmo pelo tema eu recomendo o livro da Ann Rule. Ele é tão detalhado que chega a ser indigesto em algumas partes (eu precisei parar algumas vezes para conseguir continuar, de tão pesado que era). Os complementos finais são um pouco excessivos, mas ainda ajudam a dar uma boa dimensão dos desdobramentos do caso.
Tanto o documentário como o filme me parecem passar pano demais para as atrocidades cometidas por Ted. O livro tem esta vantagem de mexer com o imaginário do leitor, colocando-o nas cenas dos crimes e imaginando o estado das vítimas. As obras audiovisuais não têm isso, fora algumas fotos de arquivos policiais que passam bem rapidinho ou desfocadas, fica bem difícil entender o que tornava os crimes de Bundy tão doentios.
Outra coisa que me incomoda no documentário e no filme é a impressão de dar o benefício da dúvida a Ted. Há muito tempo dedicado a alguns desencontros do julgamento, o que pode levar algumas pessoas a até acreditarem na inocência dele. Até no julgamento do O.J. Simpson (que tem livro pela Darkside também e está disponível na Netflix), que foi bem controverso, a gente não se convence da inocência do acusado.
Se este é um tema que te interessa e você quer realmente saber mais sobre o serial killer, recomendo o livro e, no máximo, o documentário, principalmente para dar cara aos nomes que você conheceu no livro. São as principais formas de entender um pouco mais sobre este sórdido assassino. Quanto ao filme, é uma pena que o apelo comercial reforce esta mitificação em torno de um cara que não merece nem metade desta atenção.